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Na Amazônia, crimes ambientais, tráfico de drogas, contrabando e tráfico humano andam de mãos dadas. Quando não são cometidos pelos mesmos atores, estes são complementares. Sem considerar esta convergência fica difícil, quase impossível enfrentar o crime transnacional organizado, que, por meio de sua poderosa economia do ilícito, movimenta fortunas na informalidade e cada vez mais (e possivelmente majoritariamente) dentro dos canais formais da economia, política e até mesmo da religião.
Nesta semana, o jornal O Estado de S.Paulo mostrou que Luciane Barbosa Farias, a primeira-dama do Comando Vermelho na Amazônia, circulou com desenvoltura por Brasília. Foi recebida em dois ministérios, fez discurso reclamando das violações do sistema prisional do Brasil e chegou até a ter sua viagem custeada pelo erário.
Casada com Clemilson dos Santos Faria, o “Tio Patinhas” do Comando Vermelho, Luciane ganhou acesso e palanque nos órgãos federais por sua versão – vamos dizer assim – “institucional”. Ela é presidente da Associação Instituto Liberdade do Amazonas (ILA), uma ONG de defesa dos direitos humanos de presidiários e suas famílias, que segundo elas são vítimas colaterais do Estado opressor que insiste em procurar celulares, armas e drogas escondidas em roupas e até mesmo nos orifícios corporais.
Na Amazônia, crimes ambientais, tráfico de drogas, contrabando e tráfico humano andam de mãos dadas. Quando não são cometidos pelos mesmos atores, estes são complementares
Confrontado com o problema, o governo e seus aliados reagiram assim:
1. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, relembrou que o então vice-presidente Hamilton Mourão certa vez recebeu um traficante em seu gabinete. Portanto, bolsonaristas não podem se queixar.
2. O Ministério da Justiça minimizou. A “dama do tráfico”, como passou a ser chamada, fez uma visita, sim, ao ministério, mas não esteve com o ministro. Construíram uma barreira sanitária no segundo escalão.
3. O Ministério dos Direitos Humanos, que pagou uma das viagens de Luciana ao Distrito Federal, foi além. Muito além. Viu atos “claramente coordenados” por “próceres do fascismo à brasileira”.
4. Não faltam jornalistas engajados na luta antifascista e reparatória da dignidade de Luciane. Segundo um deles, a notícia do Estadão é falsa porque, quando esteve no MJ, Luciane ainda não havia sido condenada. Outra falou, falou, falou... para ao fim dizer exatamente o mesmo. A mulher é inocente até que transite todo o processo. Ou seja, duas instâncias são apenas uma parte do processo legal. Como ainda tem STJ, STF e toda ordem de idas e vindas processuais, a mulher tem de ser tratada como inocente. Um garantismo preocupantemente seletivo.
5. O Comitê de Prevenção e Combate à Tortura no Amazonas, que foi a entidade que destacou Luciane para ir a Brasília, reconheceu que não tinha informação de que Luciane Barbosa Farias era casada com o líder do Comando Vermelho. Mas isso não é um problema. “Mesmo que soubesse, seria irrelevante”, disse sua presidente, pois a “lei não proíbe alguém de ser parente de Fulano ou Sicrano”. “Dona Luciane não tem uma sentença condenatória transitada em julgado, portanto, ela é inocente.”
Ainda bem que a responsabilidade do crime é individual e não pode ser transmitida para quem quer que seja por consanguinidade. Esta é uma premissa básica do Direito e das garantias fundamentais. Mas Luciane não é investigada ou acusada pelos crimes do marido. Tampouco o é por ser mulher de bandido. Pesam sobre ela denúncias graves sobre suas alegadas operações em favor do Comando Vermelho. É claro que, ao fim do processo, ela pode, sim, vir a ser inocentada de todas elas. Mas existe algo inescapável: Tio Patinhas.
Sua relação marital com um traficante, líder de facção, não a transforma em criminosa, mas não pode ser ignorada. Todos os aspectos de sua vida, do afetivo, passando pelo financeiro, chegando ao seu ativismo, estão intrinsecamente ligados ao crime organizado. Tadinha. Essa é uma consequência inevitável de ser mulher de bandido e de viver na órbita e sob as expensas do crime organizado.
Ignorar isso é inadmissível para quem quer que seja.
Aqueles que normalizam a presença de Luciane nos ministérios possivelmente se esqueceram de uma história recente que chocou todos nós. O assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. Muita gente acreditou, e ainda acredita, que os homicídios se deram apenas por causa das denúncias de crimes ambientais que recorrentemente eram feitas por Pereira. Não que seja teoria correta, mas é incompleta. A exploração ilegal dos recursos da floresta, nem de longe, explica sozinha a violência que não só tragou a vida da dupla como tem sido responsável por uma explosão no número de homicídios na Amazônia.
São injustificáveis as piruetas do governo, seus ministros, seus partidários, seus assessores, seus jornalistas, seus xerimbabos em geral para pintar de rosa as acusações, denúncias, condenações e relações da “dama do tráfico”
Como já foi dito na abertura desta coluna, crimes ambientais, tráfico de drogas, contrabando e toda ordem de atividade criminosa andam de mãos dadas. O Vale do Javari é uma área sob disputa por bandidos de facções concorrentes que, além de se matarem, subjugam ribeirinhos e indígenas pelo controle das rotas de cocaína que vão abastecer os micromercados do interior da Amazônia, até as grandes cidades das regiões Norte e Nordeste do Brasil. O Comando Vermelho do senhor Tio Patinhas é uma dessas organizações.
Os assassinos de Don e Bruno não eram apenas pescadores ilegais, são subproduto do mesmo ecossistema onde os soldados do tráfico, aqueles que devem lealdade ao senhor Tio Patinhas, matam, esquartejam e em alguns casos não têm pudor algum de bater uma bolinha com a cabeça do adversário.
São injustificáveis as piruetas do governo, seus ministros, seus partidários, seus assessores, seus jornalistas, seus xerimbabos em geral para pintar de rosa as acusações, denúncias, condenações e relações da “dama do tráfico”. O esforço para negar não protege o governo, mas o tráfico. Fica a dica.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos