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Donald Trump gesticula ao deixar um tribunal na cidade de Nova York, em 16 de maio.
Donald Trump gesticula ao deixar um tribunal na cidade de Nova York, em 16 de maio.| Foto: Angela Weiss/Pool/EFE/EPA

No fim de 2020, uma jornalista me ligou para perguntar se eu achava que os Estados Unidos estavam à beira de uma guerra civil. Eu ri. Não foi por menosprezo pela pergunta, muito menos pela consideração de buscar saber minha opinião. Ri porque não fazia a menor ideia de como uma possibilidade tão extrema estava sobre a mesa. Ela me disse “muita gente boa e séria em Washington acha que sim”.

Naqueles dias, os americanos se debatiam nas águas revoltas da contestação dos resultados das eleições. Todos nós sabemos como a confusão evoluiu, alimentada pela mais intensa campanha de desinformação, e foi desaguar no ataque ao Capitólio; ela ainda se arrasta como um fantasma nos Estados Unidos.

Apesar dos diagnósticos sombrios, a democracia americana saiu ilesa. Mas não a confiança na democracia.

Voltando um pouco no tempo, em 2016 muita gente entrou em pânico com a eleição de Donald Trump. O republicano chegou a ser comparado a Hitler em uma publicação na Alemanha, onde ninguém brinca com o nazismo como no Brasil. Os alemães da Der Spiegel dedicaram capas e capas para ilustrar a tragédia que se abateu sobre a América.

A recusa do ex-presidente em aceitar a derrota eleitoral e sua capacidade de mobilizar seus apoiadores não me parecem suficientes para alentar a tese de que os Estados Unidos estão à beira de uma nova guerra civil

O clima de “morte da democracia” se arrastou por todo o governo e “se confirmou” com o assalto ao Capitólio, naquele fatídico 6 de janeiro de 2021.

Depois de todo esse processo, os republicanos e os trumpistas – é preciso fazer essa subdivisão devido às peculiaridades dos seguidores do ex-presidente Trump – se tornaram terreno fértil para toda e qualquer mensagem sobre a morte da democracia.

Os trumpistas estão convencidos de que foram roubados e que, portanto, as regras democráticas já são mais eficientes. Rússia, Irã e China irrigam essa mentalidade conturbada bombardeando mensagens pelas redes sociais. Para muitos trumpistas, Vladimir Putin é um cara e tanto. Um modelo.

Enquanto isso, democratas entraram em pânico. Eles, que desde a eleição de 2016 vivem sob um estado constante de chilique ideológico, viram uma insurreição que “por pouco” não colocou a América em xeque.

Não param de vir sinais de que a América está à beira da autocracia com uma possível volta de Trump. Acabei de ler o recém-lançado Rebellion: How Antiliberalism is Tearing America Apart Again (“Rebelião: como o antiliberalismo está destruindo a América novamente”, em tradução livre), do brilhante historiador Robert Kagan. Acostumado a escrever sobre eventos do passado, que segundo ele permitem uma visão mais distante e “limpa” do processo, Kagan olha para o presente e arrisca uma visão de futuro. Uma visão bem pessimista.

Para ele, os Estados Unidos estão novamente em secessão, ou muito perto de uma. E o ponto de inflexão será marcado pela eleição ou não de Donald Trump em novembro deste ano. Kagan busca na fundação dos Estados Unidos as fraturas que hoje estão prestes a serem ampliadas pela profunda polarização da sociedade americana atual.

Ele escreve que, apesar de a Declaração da Independência pregar valores universais e direitos naturais, o país foi criado tolerando a escravidão, garantindo a uma poderosa fatia “antiliberal” o direito de escravizar – uma anomalia que levou à Guerra Civil Americana.

Desde a sua fundação, os Estados Unidos seguem firmes na democracia, enquanto a Europa viu surgir e cair ditaduras, o fascismo e o nazismo

Kagan afirma que Donald Trump ressuscitou o fantasma da secessão e coloca o trumpismo como parte da mesma categoria antiliberal dos escravocratas que se insurgiram em defesa de seus privilégios na Guerra Civil. Uma leitura que se distancia do principal objeto de trabalho do autor, a história, e se aproxima muito mais de um manifesto com sua visão sobre o trumpismo e o risco que ele representa.

Trump tem, sim, na minha opinião, traços autocráticos. Sua base ama a ditadura. Mas a recusa do ex-presidente em aceitar a derrota eleitoral e sua capacidade de mobilizar seus apoiadores não me parecem suficientes para alentar a tese de que os Estados Unidos estão à beira de uma nova guerra civil, como me perguntou aquela jornalista quatro anos atrás.

Nesta semana, por exemplo, a revista The Economist lançou a pergunta: “A América é à prova de ditadores?”, como título de uma matéria que pinta Donald Trump como um ditador em construção. O César do Potomac.

Lá pelo meio do texto, a publicação inglesa dá a resposta. Acredita que não, ignorando que, desde a sua fundação, os Estados Unidos seguem firmes na democracia, enquanto a Europa viu surgir e cair ditaduras, o fascismo e o nazismo.

Para justificar sua descrença, a The Economist diz que Trump terá a sua disposição uma lista de 135 poderes extraordinários que ele poderá reivindicar em caso de emergência nacional; “alguns dos mais graves congelam contas bancárias e desligam a internet”, diz a revista.

A revista questiona a capacidade da Constituição americana que, por meio da sua 22.ª Emenda, limita um presidente a dois mandatos, e sugere que um Pentágono aparelhado poderá dar a Trump as condições de um golpe militar. Isso mesmo: um golpe militar.

O delírio é tamanho que eles afirmam que a Constituição dos Estados Unidos não é capaz de barrar os impulsos autocráticos de Trump. A explicação é de fazer cair o queixo de qualquer um. Principalmente de um latino-americano. A série de golpes e ditaduras implantadas na América Latina seria a prova de que a Constituição americana é capenga. Os latinos copiaram muito do texto americano, que provou ser incapaz de protegê-los de sucumbir aos ditadores. Depois, em um esforço para amenizar a maluquice, eles dizem que o que salva os países das ditaduras não são as leis, mas os valores do povo, da Justiça e dos burocratas. Acredite. Por isso que na América Latina não deu certo.

Uma coisa é certa: a América está dividida. Mas algumas coisas ainda unem, perigosamente, os dois lados deste abismo. A total falta de confiança na democracia e na resiliência dos Estados Unidos é algo mais melancólico: um clima de desatino generalizado.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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