Em janeiro, a estudante russa Olesya Krivtsova, de 20 anos, foi presa sob a acusação de terrorismo. Sua pena pode ser de até dez anos em regime fechado.| Foto:
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Em 1949, quando foi publicada a primeira edição de 1984, de George Orwell, a obra tratava de um futuro aparentemente longínquo e absolutamente distópico. Uma ficção que apontava para um mundo sob o tacape do totalitarismo, no qual pensar fora daquilo que era definido como correto pelo Estado totalitário era crime. Falar ou escrever em desacordo com o idioma forjado pelos líderes e censores era o equivalente a um passaporte para prisão. Esta Gazeta do Povo oferece gratuitamente uma edição digital do livro.

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Por anos a fio, o futuro sombrio de Orwell parecia algo que ficaria confinado no universo da ficção. Mas, a cada dia, surgem evidências de que sim. O Grande Irmão está de olho em todos nós. Em janeiro, a estudante russa Olesya Krivtsova, de 20 anos, foi presa sob a acusação de terrorismo. A garota foi delatada pelos colegas de universidade que acharam absurdas as críticas que Olesya fazia à “Operação Especial” que a Rússia empreendia para “desnazificar” a Ucrânia. Ela está em prisão domiciliar, onde aguarda julgamento. Sua pena pode ser de até dez anos em regime fechado.

As autoridades russas invadiram a casa onde Olesya vivia com seu marido em busca das provas da conspiração terrorista. Enquanto revistavam sua casa, um policial a ameaçava com uma marreta, conforme relata a imprensa russa independente. O uso da ferramenta não era por acaso. Fazia referência direta a um vídeo horripilante que os mercenários do grupo Wagner — a milícia privada que Vladimir Putin usa para terceirizar boa parte de seus crimes de guerra —, no qual os paramilitares esmagam, com golpes de marreta, o crânio de um desertor russo.

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Olesya foi presa depois de ter sido denunciada pelos seus colegas de universidade. Alguns estudantes do curso de história estavam indignados com o comportamento antipatriótico de Olesya. Segundo a BBC, que teve acesso às mensagens trocadas pelos delatores em um grupo de Telegram, as postagens de cunho pacifista de Olesya eram “publicações provocatórias de conteúdo derrotista e extremista”. Um dos universitários disse que o mal deveria ser “cortado pela raiz” e que a denúncia do comportamento de Olesya às autoridades não era mais uma opção, mas “o dever de um patriota”.

Mas o que Olesya publicava de tão perigoso que a levou a ser catalogada como terrorista em uma lista que consta jihadistas do Estado Islâmico, por exemplo? Em abril de 2022, ela chegou a ser detida e multada por colocar cartazes com mensagens contra a guerra. Fichada como inimiga dos esforços russos de libertação da Ucrânia, ela caiu em desgraça pela reincidência de postar no Instagram fotografias de vítimas civis assassinadas pelos russos.

Além disso, ela se tornou “perigosa demais” por sugerir, em uma outra postagem, que os militares russos deveriam aproveitar a primeira oportunidade para baixar as armas e desertar. Para a “justiça” russa, mensagens perturbadoras que “desacreditavam as Forças Armadas”.

Por ironia do destino, Olesya tem tatuada em sua perna uma imagem zooantropomorfa. O rosto de Vladimir Putin de onde saem oito patas, formando a imagem de uma aranha sinistra. Junto à imagem uma frase em russo, cuja tradução é: O Grande Irmão está vendo você.

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O Grande Irmão alcançou Olesya por meio dos colegas de universidade. O poder de vigilância dos estados totalitários não conta apenas com o poder de sua máquina de vigilância eletrônica como a da China. A vigilância voluntária exercida pelos estudantes russos no caso de Olesya revela como a adesão ao totalitarismo pode ser eficiente e suprir as lacunas financeiras e tecnológicas que ditaduras ao redor do mundo podem vir a enfrentar.

Não há exemplo maior e mais bem-acabado do que a estratégia desenhada pelos cubanos nos primeiros anos da revolução de 1959 e que levou Cuba a se transformar em uma das ditaduras mais eficientes de todos os tempos. O regime espalhou a notícia de que em cada quarteirão, de cada cidade, de cada vila ou povoado havia um agente do regime. Um espião recrutado ou infiltrado pronto para entregar os traidores da revolução.

O resultado: todo mundo ficou aterrorizado. O vizinho, o colega de trabalho, o vizinho, o garçom ou até mesmo um familiar pode ser um delator potencial. A política de medo foi semeada dentro de cada cidadão. E os cubanos transmitiram de geração em geração a certeza de que sempre alguém ao seu lado pode ser os olhos do “Grande Irmão”.

A Venezuela segue um caminho semelhante. Por lá todo mundo acha que está grampeado, que o regime sabe tudo e que pode facilmente alcançar quem quer que seja. Ainda em seu primeiro mandato, Hugo Chávez fez questão de vazar registros eleitorais (quem tinha votado ou não, em um referendo sobre a continuidade ou de Chávez na presidência, e dados dos eleitores) e uma lista de quem assinou o pedido de referendo. As listas negras serviram de instrumento de perseguição política e reforçaram a imagem de um regime capaz de saber tudo sobre todos.

No mundo, e no Brasil não é diferente, há a emergência de um fenômeno que sugere que em várias esferas da sociedade civil há um adesionismo e, até mesmo celebração, a um processo de constante abuso das liberdades individuais, da patrulha e de denúncias por puro “dever cívico”. O Grande Irmão está de olho e com a ajuda de muita gente.

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