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“O Brasil está de volta.” Desde a confirmação dos resultados da eleição presidencial no Brasil no final de outubro passado, esse talvez tenha sido o lema de quem, sob a perspectiva das relações internacionais, se entusiasmou com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Presidentes, primeiros-ministros, ONGs, imprensa... todo mundo se uniu sob o mote que resume a ideia de que Jair Bolsonaro havia transformado o Brasil em uma espécie de Coreia do Norte tropical – isolada e obscurantista.
A despeito dos fatos que possam ser apontados sobre o papel da política externa brasileira nos últimos quatro anos, o tal “O Brasil está de volta” não deve ser sinônimo de comemoração. Muito pelo contrário. A diplomacia brasileira sob a batuta (ou seria tacape?) petista tem um desempenho de arrepiar. Ou não. Como tudo em política, depende do gosto do freguês.
As intenções das ações do Brasil quase sempre são justificadas pela busca da paz, pela consolidação da autodeterminação e soberania dos povos, fortalecimento das alianças Sul-Sul e, ao fim, o redesenho do mundo sob o rearranjo da tal multipolaridade. Intenções que sabe lá Deus se são realmente sinceras.
Vamos ao fato da semana. Dois navios de guerra do Irã ancoraram no Rio de Janeiro. Nada demais, segundo a avaliação de ex-embaixadores brasileiros, que viram no ato um sinal de “independência do Brasil”. Um cacoete típico de diplomatas que olham para países como o Irã como se fossem a Suécia.
Sinceramente, alguém pode mesmo acreditar que o regime dos aiatolás colocou esses navios no mar para um rolê da paz, como disse a Embaixada do Irã em Brasília no Twitter?
O Irã está em guerra constante desde o dia em que Ruhollah Khomeini fundou a teocracia que até hoje governa o país. Justamente por ser uma teocracia, o regime iraniano e seus atos não podem ser analisados sem a fusão dos elementos políticos e religiosos. A escatologia (teoria sobre o fim do mundo e o que vem depois disso) xiita é exuberantemente útil para interpretar as ações do regime.
Desde o antissemitismo atávico, que atinge o ápice com o público desejo de varrer Israel do mapa, à compulsão em ter uma arma nuclear, sobram sinais de que para o Irã (se é que eles levam a sério o que eles dizem acreditar) a guerra total (nuclear?) é o caminho para a volta do profeta Jesus, o Messias para os cristãos. O tema é delicioso e longo demais para caber em uma coluna.
Voltando aos navios. A flotilha iraniana tem planos de dar uma volta ao mundo, segundo a propaganda iraniana. Por questões óbvias, eles estrearam a viagem passando pelo Estreito de Ormuz, a saída natural para os navios iranianos e ponto de passagem para 30% do petróleo negociado no mundo. Depois disso, eles seguiram para a Indonésia. Por lá, singraram o Estreito de Malaca, por onde transita nada menos de 20% de todo o comércio global. Depois disso, “deram uma sumida” nas águas do Pacífico até tentarem uma ancoragem no Chile. O presidente Gabriel Boric disse-lhes não.
Então, sem escalas, eles atravessaram a Passagem de Drake, no ponto mais ao sul do continente americano. Fizeram-se de “invisíveis” para a Argentina, onde o Irã é acusado de ser autor do atentado contra a Associação Mutual Israelita de Buenos Aires (Amia).
Os iranianos conseguiram porto no Brasil, mas tiveram, por alguma razão (explico minha hipótese em um fio no Twitter), que atrasar a viagem. Passaram um mês escondidos entre centenas de pesqueiros ilegais chineses ao norte das Ilhas Malvinas.
O desembarque no Brasil está sendo tratado como um ato de soberania. O dog whistle para as manchetes que predominaram em absolutamente todos os sites e jornais brasileiros foi dado pelos russos da agência Sputnik no dia 24 de fevereiro: “Brasil rejeita pressão dos EUA e autoriza entrada de navios iranianos no Rio de Janeiro”. O argumento pautou todo mundo e tirou de Lula e da diplomacia a responsabilidade de importar para região conflitos que deveriam estar contidos bem longe.
Depois de zarpar do Brasil soberano, terra da diplomacia ativa e altiva, os navios iranianos têm previstos uma visita ao regime de Nicolás Maduro e um deslocamento até o Canal do Panamá, por onde transita cerca de 6% do comércio marítimo mundial.
Ormuz-Malaca-Drake-Panamá. Seria coincidência ou uma viagem de preparação para algo tão inédito como a chegada de um navio de guerra iraniano em um porto sul-americano? Não existe resposta fácil. Mas certamente ela não pode ser dada pela prosaica excursão de diplomacia marítima e mensagem de paz que Teerã diz ser. Recomendo a quem possa interessar prestar bastante atenção na estabilidade das rotas marítimas.
Agora vamos voltar no tempo. Mais precisamente 13 anos, no final do governo Lula 2. Em 2010, o Brasil se prontificou com a Turquia a salvar o mundo. A ideia era construir uma alternativa “Sul-Sul” para um acordo nuclear com o Irã. Quando o Brasil entrou em cena, o nó da questão era o seguinte: o Irã tinha que entregar 1,2 mil quilos de urânio pobremente enriquecido. Pelo menos desde 2007, Lula tentava ajudar o Irã a garantir o seu direito de desenvolver seu programa nuclear.
A história mostra que os movimentos de Lula em favor dos iranianos não deram em nada. Pelo menos sob o aspecto formal. Na prática, o jogo de cena dos iranianos com a colaboração (prefiro crer que inocentemente passiva) dos brasileiros ajudou muito as ambições atômicas do regime.
Sabe aqueles 1,2 mil quilos de urânio pobremente enriquecido que o Irã tinha em suas mãos em 2010? Pois é, em 2015 o acordo foi finalmente assinado (sem participação alguma do Brasil), e o Irã tinha em seu poder 10 mil quilos de urânio pobremente enriquecido. Em cinco anos, eles multiplicaram por oito os seus estoques, enquanto Lula brincava de construir a paz mundial com seu colega Mahmoud Ahmadinejad.
A lista de conquistas da diplomacia petista é longa. Caberia contar como foi a operação que Dilma Rousseff, Maduro e a dupla Fidel e Raúl Castro fizeram para expulsar o Paraguai do Mercosul e incluir ilegalmente a Venezuela. O suporte a Manuel Zelaya, em Honduras. A tramoia com a Organização Panamericana de Saúde para contratar os médicos cubanos em regime análogo à escravidão. A prisão dos pugilistas cubanos e a devolução deles ao regime de Fidel Castro. O envio de João Santana para fazer campanhas na Venezuela e El Salvador, que foram pagas com dinheiro roubado nos esquemas de financiamento de obras via BNDES.
E... “O Brasil está de volta”.