Ouça este conteúdo
No mês passado, um busto do escritor espanhol Miguel de Cervantes foi vandalizado em São Francisco, nos Estados Unidos. Entre as pichações estava em destaque a palavra bastardo. A depredação se meio ao justiçamento racial que eclodiu depois do assassinato de George Floyd.
Na cabeça do antifa, um homem branco e europeu que nasceu no do século XVI só pode ter sido um escravocrata, um bastardo. Aliás, uma tendência no revisionismo histórico que não tem poupado estátuas em várias parte do mundo.
A idiotice se torna ainda mais aguda quando justamente o autor de Don Quixote é alvo de um protesto desta natureza. Cervantes foi escravo. Depois de capturado por piratas, ao retornar de uma missão militar no Mediterrâneo, ele foi vendido em um mercado de escravos cristãos no norte da África. Por cinco anos, ele esteve sob a chibata. E não era de brancos.
Cervantes não era o único. Estima-se que mais de 1 milhão de europeus tenham sido escravizados. A maioria deles sequestrados em suas vilas na Itália, Espanha, França e Portugal, muito antes dos primeiros escravos negros desembarcarem na América.
Mas isso não importa.
Nesta semana, a editora de opinião do The New York Times pediu as contas. Bari Weiss tornou pública a carta de demissão que entregou ao jornal americano. Ela se cansou da ruminação ideológica da equipe do jornal. Em um certo ponto, ela pergunta: “Por que editar algo desafiador aos nossos leitores, ou escrever algo ousado (...), quando podemos garantir um trabalho tranquilo (e cliques) publicando nosso 4000º artigo argumentando que Donald Trump é um perigo único para o país e para o mundo?”.
Em resumo, Bari Weiss fala que a situação piorou dentro do jornal. Mas sua queixa meio que pode ser estendida para a imprensa, a universidade, os almoços de família (quando eles eram possíveis) e os únicos pontos de encontro que nos restaram em tempos de Covid-19, que são as redes sociais e os grupos de WhatsApp.
O jornal foi buscá-la na concorrência para tentar trazer para suas páginas a diversidade de ideias e fenômenos que ajudassem, sobretudo os jornalistas, a compreender o país que cobrem. Ou quem sabe o mundo onde vivem. Mas, conforme a editora descreve, “as lições sobre a importância de entender outros americanos, a necessidade de resistir ao tribalismo e a centralidade da livre troca de ideias a uma sociedade democrática não foram aprendidas”. Ao contrário. “Um novo consenso" surgiu fruto da “ortodoxia de poucos iluminados, cujo trabalho é informar a todos os outros”.
Chocados pelos divergência ideias nas páginas do The New York Times, muitos jornalistas torciam o nariz ou até mesmo faziam bullying. Palavra generosa para dizer que a chamavam de racista e até mesmo nazista.
Bari se foi e a vida seguiu normalmente no jornal. No dia seguinte teve até vídeo do Felipe Neto para alegria dos reporteens.
Apenas um dia antes, no The Wall Street Journal, o colunista e ex-diretor do jornal, Gerard Baker, cantou a pedra. Pegando carona no slogan que The Washington Post adotou logo depois da posse de Donald Trump, ele publicou um artigo intitulado “A Democracia morre na escuridão, mas não culpe Trump”.
O texto é direto. Baker descreve que, para muitos, a eleição de Donald Trump empurraria os Estados Unidos para as trevas da censura e da supressão das liberdades. Segundo o Comitê de Proteção aos Jornalistas, “uma presidência Trump representa uma ameaça à liberdade de imprensa desconhecida na história moderna”.
Mas aconteceu? Como na lógica dos duelos, ganha quem atira primeiro. Mas não basta atirar, tem que acertar. Editores são obrigados a fechar espaços para vozes dissonantes ou demitidos pelos ecos do Twitter. Pesquisadores e professores execrados, afastados e até mesmo demitidos por suas opiniões. Fascista bom é fascista demitido. Ou cancelado, para fazer jus ao espírito atual.
Mas isso não importa.
No Brasil há caminho mais fácil para o sucesso que repetir pela 4000ª vez as mesmas verdades consolidadas pela tribo. Melhor ainda quando o outro lado reage.
O bolsonarismo se transformou no maior impulsionador de carreiras dos últimos tempos. O próprio presidente Jair Bolsonaro é o maior alavancador de seus críticos e detratores. Parece que ele é o único que ainda não entendeu que suas reações desprovidas de qualquer suavidade e sofisticação só servem para fortalecer a tese de que o Brasil é uma espécie de Gilead tropical.
O ambiente é tão doido que o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito que tem por objetivo investigar o uso político de fake news no Brasil foi fazer um intercâmbio na Rússia para aprender a “combater o mal”. Justamente na Rússia, onde as fake news são um produto de excelência, assim como a vodca e o caviar.
A presença do senador Angelo Coronel (PSD/BA) em Moscou é o símbolo da ignorância escancarada. Quando era agente da KGB, Vladmir Putin comandou o embrião do que viria a ser uma das mais eficientes e sofisticadas máquinas de plantação de notícias falsas pelo mundo. Algumas delas, como a famosa origem do vírus da aids em um laboratório militar no interior do Estado de Maryland, nos Estados Unidos, é uma delas. Criada nos anos 1980, a espécie de mãe das fake news engana até hoje muita gente pelo mundo.
A máquina de confusão comandada por Moscou já foi identificada em processos eleitorais na Espanha, no Brexit, nos Estados Unidos e no Brasil. Qualquer leitor mediano, que passa os olhos pelo noticiário internacional, teria a mais leve noção de que não dá para levar a sério os padrões russos de liberdade. Muito menos quando se trata de manipulação da informação. Mas o senador Coronel foi lá beber na fonte. Em dias menos turbulentos, idiossincrasias, como a própria CPI em si, não seriam poupadas. Mas, realmente, nada disso importa.
Afinal, tudo isso é para o nosso bem.