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A maioria dos americanos está aprisionada no ano de 2016. Não só as pessoas. As instituições, a imprensa e a política não conseguem abandonar aquele ano. Desde então o país vive em uma constante (será eterna?) campanha eleitoral.
Em 2016, os americanos foram convencidos de que a democracia morreria assim que Trump tomasse posse. Muitos outros foram além. Acreditaram que os Estados Unidos ruíram ainda naquela eleição de novembro. A tática da disseminação do medo é algo conhecido em campanhas políticas, mas o que aconteceu na América foi a adoção da divisão como algo perene.
Os democratas, com o apoio incondicional da maioria da imprensa (dentro e fora dos Estados Unidos), estenderam pelos quatro anos seguintes o mesmo tom da campanha. Em 6 de janeiro de 2021, quando os amalucados inflados pelas narrativas de fraude e encantados pelas teorias do QAnon – uma grande operação psicológica com comprovada atuação estrangeira – invadiram o Capitólio, todos os medos foram justificados.
Enquanto isso, do outro lado do campo, os trumpistas viram-se diante de uma batalha contra o wokismo e todas as suas variantes. Viram-se humilhados (como conteúdo da tal “cesta de deploráveis”, segundo Hillary Clinton). Radicalizaram à medida que os democratas se radicalizavam. E, como resultado direto da radicalização do trumpismo, os democratas se tornavam ainda mais radicais, gerando um efeito cíclico que transformou o debate político nos Estados Unidos em algo tóxico, raivoso e infrutífero.
Trump atravessou seus quatro anos de governo sem governar exatamente. Fazia campanha. Falava para sua claque. Era ridicularizado e negado pelos opositores; como resposta, ele entregou desdém e uma certa dose de anarquia e irresponsabilidade.
Joe Biden ganhou a eleição em 2020 e não abandonou a campanha. Renovou e alimentou o mesmo ambiente de 2016 e não governou. Fez campanha. Não é possível falar que existe uma “administração Biden”. Existe um gabinete formado por agendas do Partido Democrata que, segundo a força de cada grupo dentro da Casa Branca, se impõe. Fazendo valer o que a fatia mais à esquerda do partido almeja para si. Aqueles que não votaram em Biden ou não pensam como o Partido Democrata viraram um zero à esquerda.
A agenda do partido superou até os interesses nacionais. Basta lembrar que os assessores de Biden torceram para a eleição de Lula, no Brasil, mesmo sabendo que o petista odeia os Estados Unidos e que, depois de eleito, faria de tudo para bater a carteira dos americanos. Democratic Party Agenda First.
Nem Trump nem Biden foram presidentes de todos os americanos. Cada um, ao seu modo, foi o maestro de sua banda. Orquestras com repertórios diferentes que sempre coexistiram e por muitas vezes tocaram juntas. Mas, na eleição de 2016, elas parecem ter se divorciado. Uma separação litigiosa com profundas sequelas.
Esta coluna já tratou do medo de uma nova secessão que aflige ambos os polos da política americana. É evidente que há uma erosão em alguns dos pilares da unidade americana. Não acredito que ao ponto de levar ao seu desmoronamento como sociedade ou democracia – como tantos teimam em profetizar.
A condenação de Donald Trump é o episódio mais recente do eterno clima de campanha nos Estados Unidos. O negócio se tornou tão absurdamente esdrúxulo que não se trata mais de julgar se o réu havia cometido crimes ou não. O robusto sistema judicial dos Estados Unidos foi arrastado por uma arena e passou a exercer o papel de fera. Pronta para devorar o réu.
Não se trata de defender o ex-presidente. Muito menos afirmar sua inocência. Mas o processo e o julgamento (que tinha desde um juiz com uma capivara do tamanho do Empire State, capaz de torná-lo suspeito, até um júri que parece ter saído de uma convenção regional democrata) não podem ser vistos como uma ação eleitoral.
O mais bizarro é que esta não é uma percepção apenas de trumpistas, mas também dos democratas mais hardcore. Os seguidores do presidente veem o julgamento como uma armação para tirar Trump da eleição. Os eleitores de Biden veem o julgamento como uma grande oportunidade de tirar Trump da eleição, ou pelo menos uma grande conquista para envergonhar o eleitor mediano, que é quem faz a diferença nas eleições bipartidárias.
Assim sendo, em escalas diferentes (devido à magnitude do espetáculo), a condenação de Trump não se difere muito da infâmia do 6 de janeiro. Invadir o Capitólio não é muito diferente que transformar a Justiça dos Estados Unidos – que é uma das referências do mundo civilizado – em um instrumento eleitoral.
O mais desolador é que não há luz no horizonte. Trump vem aí com sentimento de vingança. Se eleito, como muitas pesquisas sugerem, ele seguirá em campanha. Atuando para esfacelar seus concorrentes. Se eleito, ele não terá um dia de sossego. Afinal, o fascismo terá vencido, como já anunciam algumas publicações na imprensa americana.
Ele não poderá ser passivo. Qualquer reação, mesmo a mais suave, tenderá a provocar uma nova resposta democrata. Em tese, isso é o jogo político em si. Em tese, sempre foi assim e sempre será assim. Mas há algo de diferente desde 2016 que está levando os americanos a perderem tempo, energia e foco no que importa e estão jogando contra si mesmos. Enquanto isso, na arquibancada, os inimigos do país batem palmas e gritam olé.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos