“O senhor entrou na zona de identificação de defesa aérea da China”, diz um militar chinês a partir de uma unidade de controle do espaço aéreo da China. Antes de responder ao contato, o piloto – que vinha voando baixo sobre o que se entende ser o Mar do Sul da China – responde, em bom inglês americano: “Podemos entrar e sair quando quisermos”. Depois de fazer um rasante sobre uma plataforma de petróleo em alto mar, o estrondo sônico estilhaça as janelas de um navio da Guarda Costeira da China. Assim começa “Born to Fly” (2023), o recém-lançado filme-propaganda chinês que chega aos cinemas para apresentar os superpoderes do país no que se refere à sua força aérea.
A cena de abertura descrita acima continua com uma perseguição e, ao estilo “Top Gun”, uma batalha aérea. Um caça Shenyang J-11 decola de um porta-aviões nas proximidades e tenta interceptar o invasor, nada menos que um F-35 Lightning II, o caça mais moderno da Força Aérea dos Estados Unidos.
O resultado não poderia ser diferente. Os chineses tomam um banho. Fracassam na abordagem e ainda têm seu caça abatido e o piloto morto em ação.
Depois da ação e tragédia, vem o que parece ser a parte central do sentimento chinês em relação aos seus rivais. O amargor da humilhação. Um oficial expressa a sua tristeza em ver seus homens e seu país serem humilhados por forças estrangeiras, bem-sucedidas em seu território por possuírem melhor tecnologia militar.
A história se desenvolve com a formação de uma geração de novos pilotos de elite e o desenvolvimento de um caça capaz de fazer frente aos inimigos. No caso, o Chengdu J-20, que dentro e fora das telas, é o equipamento que faz frente ao F-35. Um caça que em 2017 foi incorporado na Força Aérea do Exército de Libertação Popular, como é chamada a Força Aérea na China.
Chega a ser bizarra a forma como o filme comete erros sobre aviação militar de caça. É inexplicável, por exemplo, eles se referirem ao F-35 americano como se fosse um caça de quarta geração. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com o tema sabe que o modelo é a fina-flor dos caças de quinta geração. Mais esquisito ainda é o downgrade que eles dão aos seus J-11. O caça de quarta geração é citado no filme como sendo de terceira.
Sem a capacidade de filmar com o F-35 real, eles usaram e abusaram da computação gráfica para simular manobras que deixaram os militares chineses raivosos. Há relatos de que o filme teve o lançamento adiado em mais de seis meses, para que a irritação com os erros fosse aplacada entre os militares.
Talvez eles tenham se convencido de que a precisão é um detalhe frente ao que eles querem falar para o público interno e para os vizinhos. A desvantagem foi superada e nós somos capazes de enfrentar quem quer que seja para defender o que julgamos ser necessário ser defendido. Invadir o que queremos invadir e lutar contra qualquer força que seja.
Propaganda é propaganda. Mas, diferentemente das duas versões de “Wolf Warrior”, que, na linha “Rambo”, tentam emplacar a imagem de um super soldado movido pelo treinamento impecável e compromisso com a China, “Born to Fly” constrói uma narrativa sobre uma realidade inegável. Por meio de muito investimento e roubo de tecnologia dos adversários, as Forças Armadas Chinesas deram um salto tecnológico que reduziu sobremaneira a principal vantagem competitiva que os Estados Unidos, por exemplo, tinham em relação aos seus oponentes.
Questões envolvendo Taiwan e a soberania no Mar do Sul da China são pontos nevrálgicos na relação entre Washington e Pequim. Os chineses têm corrido e ganhando cada vez mais confiança de que podem tentar dar aquele passo além.
“Born to Fly” parece ser uma mensagem de otimismo para quem ainda acha que não está pronto para mostrar as garras. Mostrado no filme como inimigo, os Estados Unidos (cuja indústria cinematográfica faz de tudo para não melindrar o Partido Comunista Chinês) são acusados de ter atrasado o desenvolvimento da China, bloqueando seu acesso à tecnologia. Um delírio vitimista, pois a China só chegou aonde chegou porque os americanos, achando que estavam fazendo um grande negócio, criaram as condições para que a China se transformasse no parque industrial do mundo.
Além disso, formou gerações de cientistas chineses e permitiu que boa parte deles simplesmente atuasse como espiões dentro de suas universidades e instituições estatais de pesquisa e desenvolvimento, sugando informações e tecnologia que foram o atalho para a China produzir “seus próprios” produtos.
Como filme, “Born to Fly” é uma cópia mambembe de “Top Gun: Maverick”. Como propaganda, “Born to Fly” pode ser encarado como uma tentativa de dizer para o Ocidente quão capazes eles se tornaram de lutar e, descontando a autoconfiança e exageros, uma mensagem do que pode vir a ser real em um cenário de guerra convencional.
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