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Alguns usuários do X ressuscitaram, nos últimos dias, um trecho do livro O fim da história e o último homem, de Francis Fukuyama. O parágrafo, que está se tornando popular nas redes, faz parte do último capítulo da obra lançada em 1992, que discute o mundo pós-Guerra Fria. A vitória do Ocidente capitalista e liberal contra o comunismo soviético. Mal interpretado por muitos, Fukuyama foi criticado em vaticinar que o mundo se tornaria estável e que a democracia havia vencido.
O pensador e professor de Stanford nunca escreveu que o mundo mergulharia na monotonia. Pelo contrário. Por isso, um único parágrafo de seu livro mais famoso reemergiu para explicar, em poucas linhas, o que está acontecendo hoje nos campi de universidades nos Estados Unidos e já ganha imitadores em outras partes do mundo. Segue uma tradução livre:
“Mas supondo que o mundo tenha se ‘enchido’, por assim dizer, de democracias liberais, de modo que não existam tiranias e opressões dignas desse nome, contra quais lutar? A experiência sugere que se os homens não puderem lutar em nome de uma causa justa, porque essa causa justa foi vitoriosa em uma geração anterior, então eles lutarão contra a causa justa. Eles lutarão pelo bem da luta. Em outras palavras, lutarão por um certo tédio, pois não conseguem imaginar viver em um mundo sem luta. E se a maior parte do mundo em que vivem for caracterizada por uma democracia liberal pacífica e próspera, então eles lutarão contra essa paz e prosperidade e contra a democracia”.
Embora este seja o texto destacado nas redes, ele não deveria ser lido e considerado sem o parágrafo seguinte no qual Fukuyama avança em seu raciocínio que vem sendo visto como profético. Na realidade, ele recorreu à história recente para apontar para um futuro que parece ter chegado agora, três décadas depois da publicação de seu livro. Segue uma tradução livre:
“Essa psicologia pode ser vista em ação por trás de surtos como os eventos franceses de 1968. Os estudantes que temporariamente tomaram Paris e derrubaram o General de Gaulle não tinham nenhum motivo ‘racional’ para se rebelar, pois eram, em sua maioria, filhos mimados de uma das sociedades mais livres e prósperas do mundo. Mas foi justamente a ausência de luta e sacrifício em suas vidas de classe média que os levou a sair às ruas e enfrentar a polícia. Embora muitos estivessem apaixonados por fragmentos impraticáveis de ideias como o maoísmo, eles não tinham uma visão particularmente coerente de uma sociedade melhor. A essência de seu protesto, no entanto, era uma questão de indiferença; o que eles rejeitavam era a vida em uma sociedade na qual os ideais haviam, de alguma forma, se tornado impossíveis.”
Fukuyama acertou no prognóstico? Minha opinião é que sim. Conceitualmente sim. E por que conceitualmente?
Sabemos que existem várias tiranias pelo mundo. De Teerã a Caracas, de Pequim a Manágua ou de Moscou a Havana. Mas por que nós ocidentais não lutamos? Ou por que os jovens que vivem em países com as melhores condições de vida e acesso ao que o melhor do mundo pode dar não lutam?
As tiranias estão visíveis aos nossos olhos, mas elas se mimetizaram. Como não há mais os “dois mundos” da Guerra Fria, elas passaram a “fazer parte” do mesmo universo das democracias. Não é raro ouvir de líderes que visitam Pequim que a China nem parece um país comunista. Apenas para focar nos brasileiros, de Lula a Bolsonaro ouvimos a mesma declaração.
Os autoritários se escoram nas imperfeições das democracias liberais (sim, as democracias são imperfeitas!) para relativizar seus regimes. Eles fazem isso todos os dias, por anos a fio. O resultado é o seguinte: “Quem somos nós para criticar Irã, Cuba, Rússia, China, Venezuela, Nicarágua se reprimimos estudantes que apenas querem expressar sua indignação pelo genocídio em Gaza?”
No mesmo X, onde o trecho profético de Fukuyama foi resgatado como diagnóstico da luta existencial da juventude ocidental, é possível ler jornalistas, políticos, acadêmicos, influencers e bocós falando a mesma coisa que líderes autocratas, em um mutirão para desqualificar os americanos, como se isso não desqualificasse a democracia. “Os EUA são a maior democracia do mundo?” “Cadê a turma da liberdade de expressão aqui dessa rede criticando a repressão aos estudantes americanos que protestam em defesa da Palestina e contra Israel??”, pinçando apenas dois comentários reais que passaram pelo feed do X.
Os autoritários se escoram nas imperfeições das democracias liberais (sim, as democracias são imperfeitas!) para relativizar seus regimes
Voltando a Fukuyama. Em seu O fim da história e o último homem, ele diz algo ainda mais sólido para entender o que está acontecendo e porque está acontecendo nas economias mais desenvolvidas em países com maior solidez democrática. Ele é enfático em dizer (o que deveria ser óbvio). Nenhum regime político ou socioeconômico agradará a todos. A questão é como cada sociedade pode reagir. E este é um dos pontos centrais que separam ditaduras de democracias.
Nas últimas palavras de seu livro, ele nos deixou um alerta que foi negligenciado. A insatisfação daqueles que vivem em democracias liberais como nos Estados Unidos, por exemplo, não é um atestado de falência democrática, tampouco é resultado “de incompletude da revolução democrática” ou pelo fato de nem todos no mundo terem recebido “as bênçãos da liberdade e da igualdade”.
A insatisfação, escreveu Fukuyama, “surge precisamente onde a democracia triunfou mais completamente”. Algo que parece paradoxal, mas que, de certa maneira, é autoexplicável pelo vazio dos insatisfeitos que é preenchido com causas que possam dar-lhes algum sentido de luta, de legado, de sei lá o quê que possa fazê-los se sentir menos inúteis.Mas não podemos menosprezá-los. Sejam eles mimados, vazios, perdidos ou manobráveis, “aqueles que permanecerem insatisfeitos terão sempre o potencial de reiniciar a história”.
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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima