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Nesta semana, a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, se livrou de um processo na Justiça de seu país no qual era acusada de conluio com o Irã. Em 2013, quando ela era a presidente da Argentina, seu governo firmou com o regime de Teerã um acordo que, em tese, buscaria esclarecer o atentado terrorista perpetrado contra a sede da Associação Mutual Israelita de Buenos Aires (Amia), em 1994, cuja autoria é atribuída ao Hezbollah e aos seus ventríloquos: o governo iraniano.
O tal acordo, que foi denunciado em 2015 pelo então chefe das investigações do atentado, o procurador Alberto Nisman, era evidentemente favorável ao Irã. Tinha como condição a derrubada das notificações vermelhas emitidas pela Interpol contra funcionários, políticos e religiosos iranianos acusados de estarem diretamente envolvidos no atentado.
Nisman morreu dias depois de anunciar que denunciaria o acordo. Tomou um tiro na cabeça e teve a cena do crime maquiada para simular um suicídio.
Pouca gente tem em mente, mas o atentado contra a Amia e um outro ocorrido dois anos antes, contra a embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992, têm em comum as aspirações nucleares do Irã e a fúria do Hezbollah.
O Irã não ficou nada satisfeito com o governo de Carlos Menem (1989-1999), que deu meia volta em um acordo que permitiria aos aiatolás realizar o seu sonho dourado de colocar em funcionamento a usina nuclear de Bushehr – um projeto abandonado pelos alemães quando da revolução iraniana de 1979 e que nem o Irã e os seus aliados russos se demonstravam capazes de concluir.
O combo de vingança misturava a fúria pela rejeição atômica e o ódio a Israel pelo que o Estado judeu representa e pelas baixas impostas pelas forças israelenses aos líderes do Hezbollah. Eis a razão da escolha dos alvos e de Buenos Aires.
A usina iraniana de Bushehr tem uma irmã gêmea na Argentina. E os segredos nucleares argentinos eram a pedra de roseta para os aiatolás colocarem para funcionar a instalação que lhes renderia mais do que segurança energética. Projetada para funcionar com a tecnologia de “água pesada”, a usina iraniana – assim como a argentina – produz como rejeito plutônio. Um ingrediente vital para as armas nucleares que o regime teocrático persegue, não só para falar grosso com o mundo. Há muito radical por lá que crê piamente que é preciso varrer Israel e os judeus do mapa como parte das profecias do fim do mundo e a promessa de paraíso. Assunto já tratado por esta coluna.
Depois de quase três décadas de fracassos, os iranianos fizeram um movimento digno de um filme de James Bond. Em janeiro de 2007, o então presidente Mahmoud Ahmadinejad desembarcou em Caracas para incumbir ao então presidente venezuelano Hugo Chávez o papel de intermediar a compra dos segredos nucleares argentinos.
“Dinheiro não era problema”, contou uma testemunha do encontro, que está relatado no livro “Hugo Chávez, o espectro: como o presidente venezuelano alimentou o narcotráfico, financiou o terrorismo e promoveu a desordem global” (Vestígio Editora, 2018). E não era mesmo. Nem para Ahmadinejad, nem para Chávez. Malas de dinheiro voaram entre os países conectando as redes locais.
Nunca surgiu uma prova de que os segredos nucleares argentinos foram efetivamente traficados para Teerã. O fato é que apenas três anos depois da reunião no Palácio de Miraflores, em Caracas, o Irã celebrou uma de suas maiores conquistas desde a sua reinvenção como teocracia islâmica. Em agosto de 2010, o regime iniciou as operações de sua primeira usina nuclear.
Naquele mesmo ano, o governo Lula, em consórcio com a Turquia, tentava fazer bonito para o mundo tentando costurar um acordo nuclear com o Irã. Um dos pontos chave para as negociações, que era considerado como inegociável pelos americanos, previa que Teerã deveria entregar para um fiel depositário os 1,2 mil quilos de urânio pobremente enriquecido que o país tinha em seu poder.
Os esforços de Lula, como de se esperar, entraram para os anais dos fracassos da diplomacia Sul-Sul.
Cinco anos depois, Barack Obama celebrou um pacto inédito. Fazendo de conta que não percebeu o que tinha se passado nas sombras desde 2010, os americanos e os aiatolás contabilizaram 10 toneladas de urânio. O Irã nunca havia interrompido seus planos.
Há quem culpe Donald Trump, que em 2018 se retirou do acordo nuclear, pelo fato de o Irã estar na iminência de ter sua bomba e desestabilizar ainda mais a região. Como se o Irã fosse um país comportadinho.
É difícil saber o que se passava na cabeça de Trump e o que ele sabia. Mas qualquer um que observa minimamente o Irã sabia que o acordo nuclear era uma piada. O Irã jamais interrompeu sua marcha atômica e por isso o regime está tão próximo de elevar drasticamente o seu nível de ameaça regional para global.
Desde a visita de Ahmadinejad a Chávez em janeiro de 2007, já se passaram quase quinze anos. São quinze anos de negligência cuja conta logo chegará. Uma conta atômica.