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Em 2021, mais de 105 mil pessoas morreram de overdose nos Estados Unidos. Este ano terminará com cifras ainda mais sombrias. Para reforçar a dimensão da tragédia, a média diária de mortes é inferior apenas à das baixas de militares americanos na Guerra Civil (1861-1865) e na Segunda Guerra Mundial. Mas merece apedrejamento quem trata a questão das drogas como uma guerra.
Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, é crescente o coro do “vamos liberar” geral. As razões são as mais diversas, mas as mais comuns são: 1) com a legalização, quebraremos as pernas do tráfico; 2) milhares de pessoas deixarão de ser presas por envolvimento com o tráfico; 3) a carnificina que existe no tráfico de drogas terá fim; 4) acabarão as cenas horripilantes dos zumbis das cracolândias, como a do Centro de São Paulo.
Seria ótimo, mas não passa de uma ilusão vendida pelo lobby das drogas, com o apoio de políticos gananciosos ou ingênuos e com a operação de gente muito esperta, que por meio das portas giratórias transfere um tipo de conhecimento valioso para os grupos de interesse (e aqui não falo apenas do das drogas).
Tem sustentação a tese de que a legalização fará frente ao tráfico de drogas? Parece ser a mais enganosa das premissas. Cocaína e crack, por exemplo, produzidos segundo padrões industriais e farmacêuticos, seriam capazes de concorrer com a droga que é refinada nos rincões das florestas valendo-se de mão de obra semiescrava e muitas vezes infantil e com o emprego de ingredientes como gasolina e ácido sulfúrico, que são adicionados na receita juntamente com as folhas de coca? A única mudança que viria da legalização é a mudança de tipologia do crime, o tráfico passaria a ser chamado de contrabando e o traficante de contrabandista.
As pessoas então deixariam de ser presas por causa dessa mudança de tipologia? Evidentemente que não. A indústria tabagista, que vende uma droga legal, tem como maior rival o contrabando. Os cigarros falsificados representam nada menos que 49% do mercado brasileiro. Por causa de uma diferença de preço de cerca de R$ 1 por maço, os contrabandistas são capazes de abocanhar metade do mercado nacional. Imagine o caso da cocaína, cuja diferença entre a droga legal e tributada e aquela produzida pelos traficantes pode vir a ser de algumas vezes mais?
A criminalidade e a carnificina decorrentes do tráfico de drogas não existem ou deixarão de existir por causa da tipologia do crime de sua atividade-fim. As drogas – sejam elas ou produto de tráfico, ou de contrabando – seguirão sendo a fonte de financiamento de centro de disputa pelo controle territorial e de mercado, que hoje resulta na deterioração da segurança pública não só no Brasil, mas no hemisfério.
Conseguiríamos, pelo menos, dar um fim nas cracolândias espalhadas pelo Brasil? Uma pergunta que deve ser feita antes da tentativa de responder a essa anterior é a seguinte: as pessoas são viciadas por qual motivo, apenas porque a droga é ilegal? O craqueiro que chegou ao nível da sub indigência jamais terá acesso ao mercado formal de crack se o Estado não virar o patrocinador do vício, tirando dinheiro que deveria ir para saúde e educação para entupir as ruas de droga legal.
Quando era prefeito de São Paulo, o petista Fernando Haddad, além de bancar quartos de pensão para que os viciados em crack pudessem se drogar com mais dignidade, pagava uma bolsa semanal. Formalmente, a ideia era proporcionar uma política de contenção de danos que permitisse aos usuários consumir drogas em ambientes mais privados e que pudessem sustentar o vício sem ter que roubar ou se prostituir (como bem definiu para mim àquela época um membro do Judiciário paulista).
Toda sexta-feira, depois de sair da fila em que recebiam os R$ 125 semanais, eles entravam na fila do lado para entregar o valor integral da bolsa para amortizar a dívida com os traficantes. Era algo como R$ 37 mil provenientes dos cofres públicos que iam parar em uma caixa de papelão que o cobrador do PCC tinha ao seu lado para cobrar pela droga oferecida no crédito.
Uma dupla de jornalistas peso-pesado do jornal americano The Washington Post lançará na próxima semana um livro que conta como a combinação de lobby, política e cooptação de funcionários federais estratégicos pela indústria farmacêutica construiu o ambiente perfeito para o afrouxamento das medidas de repressão e a impunidade daqueles que são os responsáveis (locais) pela inundação de opioides nos Estados Unidos. Em “American Cartel”, Scott Higham e Sari Horwitz dão os nomes, citam os eventos e reconstroem todo o caminho de uma tragédia americana.
Crise que virou oportunidade para aqueles que querem ver a sociedade americana ainda mais à beira do abismo. Por meio de Cuba e do México, traficantes chineses (possivelmente agindo em coordenação ou com a tolerância do regime chinês) estão fornecendo os insumos para que os cartéis locais produzam e inundem a América com fentanil, que é 50 vezes mais potente que a heroína.
Diversos estados americanos relaxaram suas políticas de drogas. O resultado foi a melhora da qualidade da segurança pública, dos indicadores de violência e do próprio tráfico? Não é o que parece ter acontecido. Cidades localizadas nas porções mais liberais dos Estados Unidos, como a capital Washington, D.C., e as californianas São Francisco e Los Angeles exibem suas cracolândias, o aumento da indigência resultante do vício e um alarmante crescimento dos crimes violentos.
No Brasil, não falta quem trabalhe para um destino semelhante e potencialmente pior. Pena que o debate seja tão raso e contaminado pela polarização.