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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Democracias e ditaduras

Os golpes, 60 anos depois do golpe

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, passa diante dos retratos de Simón Bolívar e Hugo Chávez, durante sessão da Assembleia Nacional. (Foto: Rayner Peña R./EFE)

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Em 2021, a influenciadora Khing Hnin Wai fazia, diante de uma câmera, suas habituais sessões que misturam ginástica e dança para publicar em suas redes. De repente, ao fundo, aparecem blindados que passavam em direção ao parlamento em Nay Pyi Taw, a capital de Mianmar. Enquanto Khing se movimenta freneticamente, um golpe de Estado se dava em suas costas sem que ela se desse conta. O vídeo, que obviamente viralizou, reforçou a percepção geral de golpes clássicos. Aqueles em que militares montados sobre tanques avançam sobre o poder civil, tomando-o de assalto.

Não faz muito tempo, a América Latina se transformou em um terreno fértil para golpes como aquele transmitido acidentalmente por Khing. De tempos em tempos, país por país, aparecia um novo evento que levava à derrubada de presidentes, que eram substituídos por militares.

Em 1964, há exatos 60 anos, os militares chegaram ao poder por uma via bem sui generis. Eles não tomaram o poder exatamente pela força, mas, sim, com o amparo de parcela significativa da população e a participação ativa do Congresso.

A América Latina, que foi palco de tantos golpes militares, criou mecanismos de reação aos avanços das tropas sobre o Estado, mas não aprendeu a lidar com aqueles provocados pela destruição gradativa de suas instituições, muitas vezes por líderes eleitos

Mesmo assim, estavam lá os homens de farda e seus oficiais generais dando as ordens no país. No Brasil, foram 21 anos assim. Nos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai, a conquista do poder envolveu mais força bruta e os regimes se estenderam por menos tempo. Bolívia e Paraguai também foram palcos de uma sucessão de golpes, quase nunca lembrados, mas que sempre seguiam a cartilha do golpe clássico. Com seus militares, a força e a ruptura.

Mas os tempos mudaram, e os golpes também.

Muita gente ainda insiste em acreditar que sem pelo menos um soldado e um jipe não se dá um golpe de Estado. Por essa razão muito simples, as pessoas, no geral, só conseguem assimilar a ideia quando há o ingrediente militar envolvido.

Como resultado direto disso, é quase impossível para a maioria entender os mecanismos sistemáticos de destruição da democracia que levam ao mesmo objetivo dos golpes clássicos, mas sem chamar muito a atenção.

A América Latina, que foi palco de tantos golpes militares, criou mecanismos de reação aos avanços das tropas sobre o Estado, mas não aprendeu a lidar com aqueles provocados pela destruição gradativa de suas instituições, muitas vezes por líderes eleitos.

Esta coluna já tratou por diversas vezes sobre o tema. Em 2019, o boliviano Evo Morales renunciou à presidência e fugiu dizendo-se vítima de um golpe. Muita gente embarcou na versão dele, pois, afinal, como está prescrito nos manuais, apareceram uns oficiais gordinhos que fizeram um pronunciamento para que ele deixasse o poder.

Morales, na realidade, era o golpista da história. Por anos a fio, ele mudou as regras em seu favor, implodiu a democracia e montou as condições para sua perpetuação no poder sem que ninguém se desse conta de que havia um golpe em curso na Bolívia.

Na Venezuela não é diferente. Hugo Chávez foi eleito na última eleição livre do país, em 1998. Depois disso, ele governou o país até a sua morte em 2013 e o deixou de herança para Maduro, que segue até hoje e não vai largar o osso. Ao longo de 25 anos, Chávez sobreviveu a uma tentativa de golpe militar, em 2002, e depois disso ele trabalhou para implodir as instituições e tomar o controle do país.

Que tal pensar que o Brasil está sofrendo essa nova modalidade de golpe, sob ações paulatinas de corrosão da democracia?

Isso não se deu de uma hora para outra, tampouco foi sutil. As pessoas percebiam que havia uma perda gradual da democracia, mas insistiam em negar que havia uma ditadura em construção. Maduro assumiu de vez o perfil autocrático do regime, mas com um hibridismo diversionista que serve para parte significativa do mundo ainda se enganar ou reproduzir as mensagens e conceitos que são de interesse do regime. Um deles é chamar de “eleição” o que não é eleição.

No Brasil, 60 anos depois do golpe de 1964, muita gente acredita que o país esteve na iminência de repetir a história. Os depoimentos do núcleo do governo indicam as tensões golpistas de Jair Bolsonaro na reta final de seu governo. Cercado de aloprados, o presidente chegou a acreditar que daria para empregar as Forças Armadas para restabelecer a ordem democrática. Mas Bolsonaro não tinha os militares, não tinha a mídia, não tinha a classe política, não tinha o empresariado. Não tinha nada.

O que restou foi uma mini-insurreição popular.

Mas o fato de o Brasil ter flertado com o golpe – ainda que apenas no desejo – é o sintoma de que a saúde democrática do país não está nada bem. Que tal pensar que o Brasil está sofrendo essa nova modalidade de golpe, sob ações paulatinas de corrosão da democracia? O delírio golpista, que marcou o fim de 2022 e início de 2023, não seria apenas um dos sintomas e não a causa?

Com um pouco de esforço, dá para ver sinais claros de que o processo de corrosão institucional no Brasil criou as condições para que, sob o pretexto de salvar, se agravasse o problema.

Engana-se quem pensa que salvou a democracia no Brasil. Talvez ela nunca tenha estado ameaçada como se acreditou. Ou talvez ela esteja mais ameaçada do que nunca.

Feliz Páscoa!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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