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O apóstolo e evangelista João escreveu: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Talvez uma das definições mais claras e belas da convergência entre o divino e o humano, que desagua na figura de Jesus Cristo. Para os que creem, Jesus é o filho de Deus que, por três décadas, viveu como homem. Foi amamentado, tinha necessidades fisiológicas, e se sujava precisando ser limpo por sua mãe Maria. A humanidade de Jesus se manifesta até nas suas últimas palavras pendurado em uma cruz. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Nada mais absolutamente humano que o medo e o sentimento de solidão.
Desde que Jesus entregou a Pedro as chaves da Igreja, todos os sucessores do apóstolo passaram a ser considerados os representantes terrenos do Filho de Deus. Donos de uma espécie de procuração divina para pastorear o rebanho e atuar como zeladores da fé. Função que atualmente é exercida pelo papa Francisco.
Embora sejam chamados de “santos padres”, os papas são homens que têm como parte de sua missão perseguir a santidade. Uma tarefa demasiadamente pesada e nem sempre bem-sucedida. Dito isso, Jorge Mario Bergoglio merece o crédito de ser apenas um homem. Um argentino que torce para o insosso Clube Atlético San Lorenzo, toma chimarrão, gosta de churrasco e adora doce de leite. Mas é também o papa, e isso não faz dele um homem qualquer.
Como papa, entretanto, Francisco é muito mais.
O papa, que no começo da guerra já havia dito que a reação de Putin fora provocada pelos “latidos da Otan nos portões da Rússia”, fala em paz, mas, ao mais puro estilo lulista, equipara agressores e vítimas. Invasores e invadidos
Mas, quando o assunto é política, geopolítica e seus temas correlatos, Bergoglio fala mais alto que Francisco e usa e abusa do direito de errar. A mais recente de suas boludeces foi interpretada pelo russo Vladimir Putin como um gesto de aprovação que veio do céu.
Em um evento com católicos russos, o papa aconselhou: “Vocês são herdeiros da grande Rússia, a grande Rússia dos santos, dos reis, a grande Rússia de Pedro, o Grande, de Catarina II, o grande império russo, culto, tanta cultura, tanta humanidade”.
Além de nem sequer fazer referência à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia ou ao sofrimento das vítimas, o papa exaltou símbolos da propaganda de Putin. As declarações do papa Francisco soaram tão bem aos ouvidos de Putin que o Kremlin não só as difundiu como agradeceu efusivamente por elas. Afinal, um presente que caiu do céu.
Pegou mal. Tão mal, que o Vaticano correu para corrigir. Disse que o papa foi interpretado incorretamente.
O tal passado de glórias da Rússia a que Bergoglio, o papa, se referiu é regado de sangue católico, de invasões, perversidades, perseguições e martírios. Os católicos da Ucrânia, Lituânia e Polônia sabem muito bem o que foi defender a própria fé diante da “grandeza” agora celebrada pelo papa.
O papa, que no começo da guerra já havia dito que a reação de Putin fora provocada pelos “latidos da Otan nos portões da Rússia”, fala em paz, mas, ao mais puro estilo lulista, equipara agressores e vítimas. Invasores e invadidos. Mas não só. Demostra mais compaixão e compreensão para com os russos que para com os ucranianos. Um pastor com uma curiosa rejeição por suas ovelhas e atração por lobos.
As preferências de Bergoglio formam uma lista longa, mas vamos aos exemplos latino-americanos, por se tratar da realidade mais próxima dele e de nós. Quando o então novo presidente da Argentina, Mauricio Macri, o visitou em 2016, ganhou uma audiência de longos 22 minutos frente a um anfitrião emburrado. As expressões corporais do papa indicavam o seu desconforto diante do seu compatriota. Comportamento diametralmente oposto ao de quando Cristina Kirchner dá o ar da graça em Roma.
Alguém pode dizer que o papa Francisco opera em silêncio, nos bastidores. Mas como explicar que, quando é para defender os interesses dos lobos, ele não faz a opção pela reserva e pelo comedimento?
Em 2017, o papa recusou o convite do então presidente do Brasil, Michel Temer, para as celebrações das comemorações dos 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida. Em sua negativa, ele fez questão de citar, sem citar o impeachment de Dilma Rousseff, a crise política brasileira. Depois, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já estava na prisão, o papa enviou um rosário e depois uma carta na qual dizia esperar que o “bem vencerá o mal, a verdade vencerá a mentira”.
Em Cuba, o papa tietou Fidel Castro. Depois de celebrar uma missa na qual não mencionou as barbaridades cometidas contra os opositores políticos, ele embarcou em seu carro e foi direto para a residência do ditador que já estava, naquela ocasião, na condição de ditador-aposentado. O bastão já havia sido passado por Fidel para seu irmão Raúl. Uma deferência digna de um fã apaixonado.
Não se sabe o que o papa Francisco disse ou cobrou (se cobrou) em portas fechadas. Mas isso é algo que pouco importa, pois nada mudou na ilha. O papa foi e voltou sem incomodar. Passou a manter uma relação bem amigável como os líderes do regime sem, em momento algum, gerar qualquer tipo de cobrança que pudesse causar constrangimento ao regime.
Algo muito parecido ao que está acontecendo com a Nicarágua, onde padres e até um bispo estão atrás das grades. Acredita-se que o papa esteja fazendo algo. Mas todo o prestígio que ele cultivou com os ditadores latino-americanos parece não servir, pelo menos, para ajudar a mitigar a violência e conter a perseguição à Igreja.
Alguém pode dizer que o papa Francisco opera em silêncio, nos bastidores. Mas como explicar que, quando é para defender os interesses dos lobos, ele não faz a opção pela reserva e pelo comedimento?
Jesus entregou a sua Igreja nas mãos dos homens. Portanto, é um tipo de administração passível de erros, contradições, omissões e pecados. Mas, independentemente da falibilidade e da fragilidade humana dos ocupantes do trono de Pedro, a missão é muito clara. O pastor deve ser pastor de todos. Todos, mesmo. Não só daqueles de quem se gosta, e muito menos só dos lobos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos