Na sexta-feira passada, meu filho adolescente passou a tarde com quatro amigos. Zanzaram pela cidade, pegaram metrô e terminaram o programa jantando juntos. Hambúrgueres, asas de frango encharcadas de molho barbecue e muita prosa depois de dias sem se encontrar e da neve que manteve quase tudo ainda mais trancado. Meia hora depois de chegar em casa, depois daquela tarde movimentada, ele desceu as escadas com os olhos arregalados. Um dos amigos havia acabado de ligar para informar que a professora de balé da irmã tinha diagnóstico de Covid-19. Ou seja, os garotos passaram a tarde e o início da noite juntos e expostos a uma pessoa que esteve em contato permanente com alguém que podia estar contaminado. Por mais que tenham usado máscaras, havia todos os ingredientes para algo dar errado. Logo depois da notícia de que o coronavírus poderia ter chegado dentro de nossa casa, ele revelou que restava torcer para a vacina funcionar. Apesar de ter apenas 17 anos, o amigo já havia recebido as duas doses de uma das vacinas disponíveis aqui nos Estados Unidos. Um ponto fora da curva por ele trabalhar em meio período em uma instituição que abriga idosos. Como havia dito meu filho. Restava confiar na vacina.
Foram cinco dias com todo mundo usando máscaras dentro de casa e, na medida do possível, isolamento. A receita foi repetida nas outras três famílias, principalmente porque, já no domingo, os pais do amigo também testaram positivo para Covid-19. Diante do quadro de contaminação geral na casa do rapaz, mais do que nunca restava confiar na vacina.
Nesta semana, os outros três garotos potencialmente expostos ao coronavírus também foram testados. Todos deram negativo. As máscaras ajudaram? O distanciamento social também? Sim e sim. Mas não há como ignorar o fato de que, entre aquele que poderia ter sido o vetor que espalharia a doença e outras quatro famílias, havia uma vacina.
Não faltam explicações sobre a relevância de o maior número de pessoas serem vacinadas para frear o alastramento de uma doença. Obviamente, as vacinas não são capazes de garantir 100% de eficácia. Mas, bem na prática, vivi nos últimos dias o compasso de espera de quem só não pegou a doença, porque entre o vírus e minha família havia uma pessoa vacinada.
Suponhamos que o rapaz tivesse sido contaminado e transmitido para os quatro amigos. E se esses amigos tivessem levado a doença para suas famílias. Teriam ocorrido pelo menos outras dezoito infecções apenas nos círculos familiares. Uma única pessoa vacinada protegeu facilmente mais algumas dezenas de pessoas, já que cada um daqueles potenciais doentes poderia ter interagido com mais pessoas.
A América do Sul parece já ter se livrado de seu pior momento desde o início da pandemia. O Brasil, por sua vez, ainda enfrenta o pico da segunda onda por suas complexidades regionais que produzem picos em momentos diferentes em cada parte do país, que vão estendendo a duração do período mais crítico do surto.
Na região, como em toda a América Latina, a batalha pelas vacinas virou a pauta central, onde todo mundo mira o sucesso do Canadá, no Norte, e do Chile, no Sul. Exemplos não tão exemplares assim.
Os canadenses assinaram contratos de compra de 400 milhões de doses – nove vezes mais que o necessário para imunizar sua população de 38 milhões de pessoas. E até agora aplicou apenas 1,7 milhão de doses, menos de 22% que o Brasil já foi capaz de aplicar até o dia 25 de fevereiro. Em termos per capita, os números canadenses melhoram, mas não se distanciam muito da realidade brasileira.
O Chile é uma belezura. No dia 24, o país apresentava uma taxa de vacinação de 16%, mais que o dobro da Europa (7%) e quase quatro vezes maior que a do Brasil (3,6%). Mas os números absolutos explicam o sucesso chileno. Com 19 milhões de habitantes, o Chile tem uma população menor que a da Região Metropolitana de São Paulo, onde vivem mais de 22 milhões de habitantes. Escalas incomparáveis, entretanto.
China e Rússia, que estão fazendo maior barulho para vender suas vacinas pelo mundo, não têm sido capazes de produzir doses nem para sua população. Segundo o último dado disponível da China, em 9 de fevereiro, apenas 40,5 milhões de chineses foram imunizados. Entre os russos, menos de 4 milhões já haviam recebido a vacina.
Há elementos suficientes indicando a incapacidade dos fabricantes entregarem as doses acordadas até para quem chegou na frente, como os canadenses. Mas, a pandemia provocou um efeito colateral improvável: cegueira. Quase ninguém consegue enxergar que não existem vacinas suficientes e que o vale-tudo por elas pode sair muito caro.
O exemplo do amigo do meu filho se tornou, em meu microcosmo social, a evidência de que boas vacinas serão capazes de nos proteger e nos permitir recuperar a vida normal. Mas é preciso disponibilidade. Potências como Alemanha e França aplicaram até agora menos doses que o Brasil. E não significa que nosso país está bem. É um indicativo de que todos estão em uma fila que não anda.
Quando o Supremo Tribunal Federal autoriza estados e municípios a negociar vacinas isoladamente, inclusive com produtos não aprovados, apenas abre as porteiras para o lobby internacional, a manipulação de governos como o chinês e o russo e pavimenta o caminho para uma praga típica de contratos emergenciais: a corrupção.
Não falta vontade no mundo. Faltam vacinas. Infelizmente.
Os esforços devem ser para que mais casos, como o do amigo do meu filho, se alastrem pelo mundo. Ele foi imunizado. O corpo dele deixou de ser uma arma silenciosa e se transformou em uma barreira que protegeu seus amigos e suas famílias. Mas não foi qualquer vacina. Não deve ser qualquer vacina. Não pode ser de qualquer forma. A pandemia vai passar e o que ficará depois dela?
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