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Em 21 anos de regime militar no Brasil, 191 pessoas foram mortas e 243 foram dadas como desaparecidas, segundo a Comissão Nacional da Verdade que em 2014 apresentou um relatório sobre a questão dos direitos humanos no país. Paralelamente, a organização Human Rights Watch apresentou uma estimativa de que pelo menos 20 mil pessoas foram torturadas no período entre 1964 e 1985.
O chavismo está no poder na Venezuela há 24 anos. Dados compilados pela organização Programa Venezolano de Educación Acción en Derechos Humanos (Provea) mostram que 320 pessoas foram assassinadas apenas em protestos de rua. “Apenas”, pelo fato de estes números não cobrirem vítimas nas dependências oficiais e clandestinas onde o regime mantém seus presos. Até 2000, foram registrados mais de 7 mil casos de torturas e violações físicas de opositores e manifestantes, com um saldo de 72 mortes.
Nicolás Maduro é o mandatário há dez anos. Sob sua borduna, o regime amplificou a violência. Apenas em 2017, ano em que foram realizados milhares de protestos em todo país, o regime de Maduro matou 143 pessoas, feriu outras 3 mil e prendeu mais 5 mil. Os dados mostram que entre 2014 e 2019, nada menos que 250 foram mortas. Além dos mortos, a violência perpetrada por Maduro deixou nada menos que 9.138 pessoas feridas nessas mesmas manifestações de rua.
Sob Maduro, 15.756 pessoas foram presas na Venezuela por “envolvimento em protestos” ou acusadas de ações desestabilizadoras. A maioria delas atualmente se encontra sob liberdade condicional, à espera de um julgamento. Quase mil já foram julgadas e condenadas, segundo dados da organização Foro Penal.
Quando o assunto é desaparecer com os adversários políticos, Maduro é uma máquina. Apenas entre 2018 e 2019, foram nada menos que 724 pessoas, conforme os números da ONG venezuelana Foro Penal e da Robert F. Kennedy Human Rights, com sede em Washington, DC.
Quase todos os desaparecidos de Maduro ou foram retirados de suas casas por agentes do Estado, sem nenhum tipo de mandado judicial, ou foram sequestrados pelas ruas do país. Muitas vezes algemados e amordaçados por pessoas mascaradas sem nenhum tipo de identificação que permitisse associá-las ao aparato estatal.
O esforço de traçar um paralelo entre os números do regime militar no Brasil e o regime de Nicolás Maduro na Venezuela não tem por objetivo realizar uma gincana mórbida de quem prende, tortura, mata e desaparece com mais pessoas. É uma tentativa de ajudar quem abraça Nicolás Maduro como um herói da resistência a conhecê-lo um pouco melhor.
Uma pergunta básica é: por que a mesma pessoa que chama o regime militar brasileiro de ditadura – e o define como umas das páginas mais sombrias de nossa história recente – não vê problema algum em defender a tal democracia venezuelana?
Nesta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva causou um alvoroço mundial ao celebrar Maduro como um democrata (o termômetro é a overdose de eleições e referendos realizados na Venezuela) e uma vítima de narrativas construídas pelos “nossos” adversários. O uso do pronome não foi uma casualidade. Lula não só se coloca ao lado de Maduro em uma guerra na qual ele também se sente vítima, como também externa que nunca deixou de ver os Estados Unidos como um adversário. Portanto, algo a ser vencido. No caso da fala de Lula, não apenas os EUA, mas também é possível enxergar o estranhamento para com o Canadá, a União Europeia e organismos como a Organização dos Estados Americanos (OEA), apenas para citar alguns exemplos de quem construiu, segundo Lula, a “narrativa” que transformou o probo e angelical Maduro em demônio.
O mais surpreendente, entretanto, não foi Lula dizer o que disse. Mas, sim, as pessoas (muitas delas treinadas em analisar o mundo, vale ressaltar) se assombraram com o que ele disse. Onde estavam todos nos últimos 20 anos? Lula não mudou um milímetro a proa de sua política e forma de pensar.
Lula não está sozinho. Talvez ele possa ser tratado como o dono de uma caverna que, tal qual a da metáfora criada por Platão, está lotada de gente que confia em um mundo de sombras projetadas sobre as paredes. E para que dar um passo apenas para fora da cova e tentar ver o que há por lá, se eles têm um guia iluminado que lá do umbral da caverna confirma o que as sombras parecem ser?
Recentemente, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, fez um discurso no Comitê de Combate à Tortura das Nações Unidas no qual disse: “Nos últimos anos, tivemos à frente da condução do país um presidente da República que cultuava torturadores e incentivava toda sorte de abusos do poder público, particularmente daqueles que detêm o monopólio do uso da força, contra a própria população”.
Almeida fala de Jair Bolsonaro. Considerando o tempo verbal, esta mesma frase poderá ser aplicada ao presidente Lula quando ele deixar a presidência? Evidentemente, sim. Mas Almeida o fará? Aqueles que condenam a ditadura no Brasil, mas dizem que na Venezuela há democracia o farão?
E se a frase de Almeida for aplicada ao presente, ficando assim: Temos à frente da condução do país um presidente da República que cultua torturadores e incentiva toda sorte de abusos do poder público, particularmente daqueles que detêm o monopólio do uso da força, contra a própria população? Seria uma forçação de barra ou uma simples constatação sobre a fragilidade do compromisso com a democracia de quem a diz defender?
Ah! Lula nunca incentivou a violência. Como não? Reduzir a barbárie social, institucional e política de um país inteiro a uma “narrativa” de “adversário” que “não gosta da Venezuela” é um esforço não só de apagar o que aconteceu, mas um aval para que os criminosos não só sigam impunes, mas com a devida licença para serem o que são. Ditadores assassinos.