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Em abril de 2011, um rapaz perturbado entrou em uma escola pública de Realengo, no Rio de Janeiro, e matou 12 adolescentes, sendo que 10 eram meninas. Wellington Menezes de Oliveira deixou pistas confusas. Algumas delas remetiam ao Islã radical. Mas as investigações mostraram que o seu plano de vingança ganhou forma dentro de um fórum da Internet.
Em 2019, uma nova tragédia. Oito adolescentes foram mortos em Suzano (SP) por dois jovens que também encontraram na Internet o combustível que inflamou a loucura deles.
Nos dois casos há uma série de pontos de contato em comum. Os atiradores frequentavam um fórum online criado por Marcelo Valle Silveira Mello, que depois de fundar uma plataforma que congrega uma legião de assemelhados, foi condenado e cumpre pena de 41 anos de prisão por associação criminosa, divulgação de imagens de pedofilia, racismo, coação, incitação ao crime e terrorismo.
Mello conectou homens e jovens de mentes conturbadas incapazes de interagir de forma saudável com o mundo, mas que culpam os outros por seus fracassos sociais, afetivos e, sobretudo, sexuais. São pessoas que odeiam as mulheres por acharam que elas são cruéis e que, portanto, são a principal fonte de seu sofrimento e isolamento social. Não por acaso, as vítimas dos atiradores brasileiros eram basicamente do sexo feminino.
Escondidos no anonimato da dark web, os seguidores de Mello distribuem pornografia infantil, xingam as mulheres e falam em matar, explodir, humilhar todos que podem ser identificados como sua fonte de infelicidade. Isso inclui negros e homossexuais. Algumas vezes, eles saltam do mundo virtual, carregam suas armas e cometem atrocidades.
Não é uma exclusividade brasileira. No Canadá, um homem de 25 anos atropelou 26 pessoas em uma calçada de Toronto, matando 10 delas. Alek Minassian não era um terrorista, mas uma pessoa frustrada – jamais havia tido uma namorada ou experiência sexual com o sexo oposto.
O caso jogou luz sobre um padrão entre os assassinos em massa. A maioria frequenta fóruns como os dos brasileiros e são extremamente infelizes por causa de sua (inexistente) vida sexual. São o que os psiquiatras chamam de celibatários involuntários. Homens que se julgam punidos pela sociedade e pelas mulheres por privá-los de sexo.
Além de confessar que sua fúria vinha de sua profunda frustração, Minassian não escondeu nas redes referências a outros assassinos que também mataram pelas mesmas razões.
O QAnon surgiu nesse mesmo caldo de cultivo. Tratado como um movimento gestado a partir de uma teoria de conspiração produzida pela extrema direita americana, o fenômeno nasceu em um desses fóruns frequentados pelos celibatários involuntários. Um suposto whistleblower, com acesso aos segredos inconfessáveis da política norte-americana e seus atores, postou em um fórum repleto de celibatários involuntários uma série de histórias bem amarradas que tratavam de uma grande conspiração para derrotar o recém-empossado Donald Trump, envolvendo bruxaria, corrupção, pedofilia e uma série de outros ingredientes que temperaram a mente alucinada dos membros dos fóruns.
Antes que se chamar QAnon, o delator – são se sabe se é a mesma pessoa – testou outras teorias pelos nomes de CIAAnon, FBIAnon e WHAnon, tentando-se fazer parecer ser alguém da CIA, do FBI ou da própria Casa Branca. A versão assinada pelo Q anônimo (é o que quer dizer a sigla) caiu no gosto do pessoal que tratou de disseminá-la nas redes sociais.
Três anos depois, o mesmo tipo de gente que não tem competência para paquerar ou entender que pode estar sendo paquerada transformou um relato anônimo e sem contato com o mundo real na base de algo que vem sendo chamado de movimento – e cujas teorias fajutas já foram retuitadas, inclusive, pelo presidente dos Estados Unidos.
Coisa de maluco.
O QAnon não está sozinho. Seu sucesso inspirou outro movimento: o Boogaloo Boys. Um monte de homens barbados, com camisas floridas e armas na mão que pregam, vejam só, uma nova guerra civil. Querem se livrar de governo que tem suprimido seus direitos como ter armas ou não usar máscaras em meio a pandemia.
Usando valores caros como a liberdade, eles mascaram a loucura de querer refundar o mundo destruindo não só a esquerda, mas a direita, que, na visão deles, não tem se mostrado boa o suficiente para atender a seus delírios expressados por meio da estética caótica e violenta.
A entrada do ingrediente político no surto dos celibatários involuntários do QAnon ou dos Boogaloo Boys e outras manifestações do gênero não pode ser suficiente para considerar os fenômenos como autenticamente políticos de extrema direita. São focos patológicos que podem ser porta de entrada para qualquer tipo de mensagem ou manipulação seja ela de qualquer origem – de esquerda, direita ou religiosa.
Mais do que combatê-los, é preciso tratá-los em sua justa medida: a de loucos armados e perigosos que não podem ser levados a sério um milímetro sequer além do limite que se deve ter para neutralizar suas ações e proliferação.