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Imagine a sensação de se comunicar tão privadamente que é permitido dizer ou escrever o que quiser com a despreocupação de que alguém pode estar bisbilhotando? Foi esse sentimento que levou os membros da Operação Lava-Jato a cair na tentação de se comportar de forma displicente, e muitas vezes infantil, no Telegram, a plataforma que prometia dar a eles inviolabilidade total de suas comunicações.
Quando foram vazadas, as conversas deles viraram argumentos para destruição da maior operação anticorrupção da história recente.
Oficialmente foi um pessoal de Araraquara que deu um golpe e conseguiu descobrir a senha de uma vítima número zero. Depois disso, olhando a agenda do primeiro Telegram clonado, repetiram a receita dezenas, centenas de vezes. Pegando um por um. Passando pelos procuradores federais, o então juiz Sérgio Moro, jornalistas, políticos e até ministros do Supremo Tribunal Federal.
Um trabalho de formiguinha que permitiu, segundo a versão oficial, ir puxando o fio – de agenda a agenda – até “pegar todo mundo”.
Mas isso faz sentido? É temporalmente possível?
Para a Polícia Federal brasileira, sim. Pelo menos a investigação concluiu que foi isso mesmo.
Petistas graúdos, depois de umas e outras, contavam outra história. Podem ter sido os efeitos ébrios dos Château Lafite e Brunellos? Pode. Mas a versão deles faz muito mais sentido que o conto de Araraquara. Segundo eles, os “hackers” seriam apenas laranjas. As informações vieram prontinhas de Moscou. Pode ser lorota de petista avinhado? Pode. Mas...
O Telegram, que virou o queridinho do pessoal sob a fachada de ser uma ferramenta dedicada à liberdade irrestrita de expressão e informação, está sob suspeita.
Assim como os membros da Lava-Jato achavam estar protegidos dentro da plataforma, opositores e críticos do regime de Putin também se expressam inadvertidamente por lá
São cada vez mais fortes as suspeitas de que a plataforma é um Cavalo de Troia que atraiu políticos, ativistas, jornalistas e dissidentes que acreditaram estar em um ambiente protegido e que por isso entregaram (e entregam) sua privacidade e muito mais do que isso para o governo russo, que teria influência sobre o aplicativo.
São cada vez mais intensas as críticas de que a promessa do Telegram de oferecer proteção é relativa. E ainda maiores as suspeitas de que o dono e criador do aplicativo, o russo Pavel Durov, que se apresenta como um dissidente que precisou deixar seu país devido à perseguição, não seja exatamente quem diz ser.
Documentos vazados por opositores russos mostram que depois que Durov se autoexilou, em 2014, ele fez pelo menos 60 viagens à Rússia. Foram viagens secretas, que embora não estejam registradas nos serviços migratórios oficiais, eram de conhecimento das autoridades russas.
Os críticos de Durov chamam a atenção pelo fato de ele ser um feroz crítico do Ocidente e da limitação da liberdade de expressão nos países democráticos, mas nunca ter se colocado como um crítico de Putin.
Para quem, assim como eu, suspeita que o Telegram é um cavalo de Troia, Durov se aproveita da polarização no ocidente e do contexto em que em muitas sociedades, como no Brasil, atos claros de censura são cometidos em nome da “defesa da democracia”, para justificar a necessidade de um ambiente livre como o de seu Telegram.
Enquanto a plataforma é defendida como “bastião da liberdade”, ela é usada para disseminar desinformação russa, apenas para citar os interesses do Kremlin.
Os defensores de Durov rebatem que ele é um herói. Afinal, em 2014, ele se viu obrigado a desfazer se sua primeira rede social depois que o governo russo queria obter os dados dos usuários. Este por sinal teria sido o evento que o obrigou também a deixar a Rússia.
Em 2018, Putin reforçou a fama de Durov, quando mandou bloquear o Telegram alegando que a plataforma estava sendo usada por terroristas. O bloqueio nunca aconteceu de fato. Formalmente por incapacidade estatal de fazê-lo. Só pode ser piada, não é?
Em agosto de 2024, Durov foi preso na França sob a acusação de não lidar com crimes no Telegram, incluindo alegações de fraude, tráfico de drogas e incentivo ao terrorismo. Muita gente viu com espanto e como “traço autoritário” dos franceses contra um defensor da liberdade. Inversão e imagem muito úteis para ajudar os russos – mas também os chineses e outros regimes – a pintar o Ocidente como decadente e autoritário, e seus regimes como modelos de defesa de valores, entre os quais, acreditem, estão a liberdade de expressão.
Mas enfim. Se Pavel Durov e seu Telegram são cavalos de Troia, não é possível afirmar. Mas tomem cuidado. Basta lembrar que foi por meio do Telegram que o Brasil perdeu a sua maior chance em anos de se moralizar.
Conteúdo editado por: Aline Menezes