Homenagem às vítimas do ataque a tiros em Uvalde, no estado americano do Texas| Foto: EFE/EPA/TANNEN MAURY
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Nesta semana, o jovem Salvador Rolando Ramos, de 18 anos, matou a tiros 19 crianças e dois adultos em uma escola primária em Uvalde, cidade no Texas a cerca de 100 quilômetros de distância da fronteira com o México, de onde vieram algumas das vítimas e a própria família de Salvador, que talvez atirasse contra a sua imagem refletida como em um espelho. Apenas dez dias antes, Payton Gendron, também de 18 anos, desceu de um carro em Buffalo, no estado de Nova York, e matou dez pessoas em um supermercado. Payton fez uma transmissão online e ao vivo da chacina e se esforçou para que não restassem dúvidas sobre as motivações racistas de sua fúria. Neste ano, já foram registrados 213 tiroteios em massa nos Estados Unidos. A matança em Uvalde é o 27º caso em uma escola. É uma verdadeira tragédia americana. Mas de qual tragédia deveríamos estar falando?

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Os tiroteios em massa nos Estados Unidos nos oferecem algumas lições que são ofuscadas pelo protagonismo que as armas têm no debate. É superficial e é incorreto atribuir a causa da tragédia à facilidade na aquisição de armamentos nos Estados Unidos. Claro que ter um fuzil de assalto facilita o trabalho e aumenta a letalidade dos atiradores. Mas a culpa é das armas? Uma comparação simplória: seria como dizer que carros matam, para definir a violência no trânsito, que é um problema grave no Brasil e é crescente nos Estados Unidos.

Mas a questão central não é o paralelo grotescamente intencional com os veículos. O senso comum, que nos empurra a colocar a culpa nas armas, nos afasta do fundamental. A doença americana é humana.

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Os atiradores são o ponto chave, mas não são tratados como tal. Nos Estados Unidos, a definição de tiroteio em massa se resume em casos em que há pelo menos quatro pessoas baleadas, excluindo o atirador. Sendo assim, a lista engloba briga de gangues, acerto de contas entre criminosos e todo tipo de crime que possa vir a envolver o uso de armas de fogo.

Semanas antes de Salvador e Payton horrorizarem o mundo nesses eventos recentes, outro rapaz feriu três pessoas ao desferir dezenas de disparos contra uma escola na capital Washington, D.C. Por não se encaixar no conceito de quatro vítimas, o caso não entra nas estatísticas, mas é fundamental para entender um traço comum entre os atiradores.

Assim como Payton, que fez um streaming do tiroteio no supermercado de Buffalo, o atirador de Washington também usou plataformas de jogos online para mostrar ao mundo a ação. Ambos eram jovens perturbados pela solidão, pela incapacidade de nutrir relações afetivas com o sexo oposto e viviam enfurnados nos fóruns da internet conhecidos como “Chans” – um território digital criado para o exercício da plena liberdade de expressão e o gozo do anonimato, que se transformou em caldo de cultivo de teorias da conspiração, pornografia e destilação dos traumas e ódios tão carregados por estes tipos.

A verdadeira arma que está em uso contra as crianças nas escolas americanas é a loucura.

Há um elevado nível de ressentimento e adoecimento represados nesses ambientes online, onde a maioria dos atiradores brota. Entre eles, há uma interação que valida seus ódios, tristezas e visões distorcidas de um mundo no qual eles se enxergam como as grandes vítimas.

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Salvador era gago. Sua dificuldade foi objeto de bullying na infância. Mas o bullying só foi capaz de marcá-lo de forma definitiva porque ele cresceu em um ambiente incapaz de oferecer-lhe instrumentos de resistência. Ao contrário, aprofundava seus traumas. Família desestruturada, drogas e violência. Ainda não está bem claro se Salvador frequentava os fóruns online ou se ele fazia parte da fauna típica daquele ambiente que são os celibatários involuntários – adolescentes e homens incapazes de se relacionar com o sexo oposto e que colocam a culpa nas mulheres, que seriam cruéis, abusivas e injustas em não se relacionarem com eles sexualmente. Mas Salvador parece reunir alguns traços típicos. Antes de matar e morrer, ele postou em suas redes que atacaria a escola. Queria ser reconhecido.

Payton, o supremacista branco, descobriu o 4Chan na pandemia. Se sentia solitário e entediado e foi buscar consolo justamente onde seria o gatilho de suas frustrações. Raymond Spencer, que vem a ser o atirador de Washington, também era um frequentador do fórum online e parece ter agido por motivação racial. Mas no caso de Spencer, os sinais podem ser trocados. A pista está em um quadro pendurado em seu quarto com a imagem de um ser lendário que os adeptos da supremacia negra acreditam ser o responsável pelo desvirtuamento da raça original, ao “criar os brancos”. Uma loucura que conquistou ativistas negros nos anos de 1960 e ainda habita a cabeça de muita gente – ainda mais no berçário de malucos que são os fóruns digitais.

Os casos de tiroteio em massa ocorridos no Brasil têm a mesmíssima natureza. De Realengo, em 2011, a Suzano, em 2019, os atiradores tinham em comum os traços de adoecimento psicológico e a relação com os fóruns virtuais. A misoginia, o racismo e toda ordem de desvios puderam ser identificados em outros membros que – embora não tenham chegado ao limite de cometer assassinatos – fizeram ameaças de morte e até de atentados.

Há mil e uma evidências suficientes de que estes espaços são o caldo de cultivo ideal para o surgimento dos atiradores e há mais evidências ainda que nestes fóruns há quem os manipule.

Seria absurdo pensar que há gente dedicada ao trabalho de aproveitar a mão de obra de malucos para erodir as fraturas da sociedade como instrumentos de desestabilização social? Nada é mais evidente que o caso das teorias conspiratórias do QAnon. O super insider que sabia tudo sobre o deep state na América alimentou as mentes perturbadas e deu robustez ao cenário que comportaria a tragédia que foi a invasão do Capitólio.

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Uma série de trabalhos sérios encontraram as digitais de Rússia, China e Irã inflando a loucura entre os frequentadores dos fóruns “Chan”.

Realmente seria muita loucura pensar que os mesmos atores externos podem estar jogando gasolina na fogueira. Alimentando os traumas e embutindo mensagens especialmente construídas a partir dos dilemas reais e ampliando-os para uma crise de segurança e autoestima?

Os Estados Unidos estão constantemente sendo colocados em desafio frente à sua própria imagem. Que realmente não é a mais linda de todas, mas tampouco é horripilante como muita gente quer que seja. Racismo e a supremacia disso e daquilo, imigrantes à margem da sociedade e radicais de direita parecem fazem parte da colcha de retalhos que serve de pano de fundo para um fenômeno cuja imagem parece ser intencionalmente desfocada.

Talvez, a melhor abordagem da crise não passe apenas pela urgência da modernização dos requisitos para a venda de armas nos Estados Unidos. Abro um parênteses aqui para dizer que não gosto delas, mas não faço parte do time que acha que elas devem ser proibidas. A questão é sobre quem tem condições de tê-las. E mais do que qualquer coisa: de onde vêm os atiradores? Quem são eles? Como se dá a radicalização? Quem está usando loucura como arma?