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Um tribunal de La Paz condenou a ex-presidente interina Jeanine Áñez a dez anos de prisão por ter sido julgada culpada de um golpe de Estado, em 2019. A clássica receita latino-americana para acusar e condenar inimigos. Áñez não deu golpe algum. A presidência sobrou para ela que, sentadinha do sofá de sua casa, assistiu três semanas de quebra-pau nas ruas do país. Para quem não se lembra, o povo coalhou as ruas de Santa Cruz de la Sierra e depois de várias outras localidades bolivianas para denunciar fraudes eleitorais e o golpe continuado de Evo Morales – o presidente cocaleiro que rasgou a Constituição que ele mesmo encomendou para nunca mais deixar o poder.
Áñez assumiu o governo em meio à celebração popular depois que Evo Morales renunciou e fugiu do país que estava inflamado por onda de protestos populares iniciados depois de uma eleição presidencial contestada em meio as claras evidências de fraude. O povo ficou três semanas nas ruas reclamando de fraude. Sob o comando de líderes que emergiram de organizações da sociedade civil, os bolivianos se reuniram em grupos de milhares para exigir eleições limpas e transparência nos resultados que, dias depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA) viria a comprovar que foram fraudados.
O governo de Áñez foi um fracasso. Horrível, caso precisem de um adjetivo para resumir sem longas explicações. Cercada de corruptos, ela jogou no lixo a chance de reorganizar a casa e pavimentar uma retomada da democracia no país. Mas chamar de golpista é mais uma das atrocidades bananeiras que são reverberadas pelas legendas de esquerda, acadêmicos capengas, redações preguiçosas e uma visão mofada do que vem a ser um golpe.
Evo Morales, então no poder e candidato, era o beneficiário de flagrantes manipulações da contagem dos votos. Ele esperneou, acusou os críticos de golpistas e até topou convocar novas eleições para acalmar o povo. Mas era tarde. O povo boliviano estava cansado de ser enganado por Morales que sorrateiramente (ou nem tanto) foi matando a já anêmica democracia boliviana.
Áñez foi condenada sem sequer o direito de comparecer no tribunal acusada de golpe. Este não é o último parágrafo do obituário da democracia boliviana. Mas para chegar até ao evento desta semana é preciso recuperar como o golpista Morales levou o seu país ao caos de 2019.
Em 2003, ele foi um dos líderes dos protestos violentos que levaram à renúncia do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Dois anos depois, ele viria a se eleger presidente, colocando-se como o redentor de um dos países mais desiguais do hemisfério.
Mas o que Morales fez foi matar a Democracia lentamente. Usar suas bases sindicais e cocaleiras para inflar conflitos internos e dividir ainda mais o país. Convocou uma Assembleia Constituinte que “refundava” a Bolívia. Trocando nome, a bandeira e outorgou poderes inéditos aos grupos étnicos e sindicais que compõem a sua base que passaram a poder julgar crimes sem levar em conta as leis nacionais, mas a “tradição milenar”. Em 2007, o novo texto constitucional encomendado por Morales foi aprovado em uma sessão sem a presença da oposição e nas dependências de um quartel.
Sem oposição e em um quartel. Ninguém viu problema algum. Afinal, os golpistas são os outros. Os outros no caso, “a velha elite” boliviana. Valendo-se dessa pecha, foi fácil para Morales avançar.
Quem teimou em criticar o presidente ganhou uma passagem sem volta para o exílio ou foi parar nas masmorras do sistema prisional local. Nada menos que 1.200 opositores deixaram o país. Alguns deles sob acusações de terrorismo e outras barbaridades.
Quando se viu sem saída, em seu último mandato constitucional, o cocaleiro deu mais um golpe. Em 2014, anunciou que disputaria para um terceiro mandato, ignorando as restrições impostas pela Constituição. Primeiro ele tentou ludibriar o povo dizendo que sua primeira eleição se deu sob uma carta magna já extinta, que, portanto, zerava as contas. Foi reeleito com apoio massivo dos movimentos indígenas e dos produtores de coca.
O sucesso da manobra o deixou tão empolgado que assim que assumiu ele declarou que as leis deveriam mudar para permitir a reeleição perpétua. Acreditando no sucesso eleitoral, convocou um referendo para validar seus planos. Mas se deu mal. Os bolivianos disseram não.
Não satisfeito recorreu aos tribunais do país, totalmente controlados por ele para garantir o seu “direito humano” de sempre poder se reeleger. E assim chegou para disputar a eleição em 2019. Ilegítimo e mudando as regras no caminho para manter o seu poder.
Mas ninguém viu o golpe.
Quando o livro Como as democracias morrem virou modinha e todo mundo passou a repetir que os golpes não mais se dão com o emprego de tanques ou militares. Governantes eleitos em situação de mais perfeita normalidade democrática, podem promover uma a destruição institucional silenciosa e paulatina capaz de corroer silenciosamente o sistema das liberdades, parecia que a turma ia aprender com a leitura. Parecia.
O golpista Evo Morales que estava enredado na própria trama golpista pediu para sair em meio a um cenário de golpe clássico para sair de vítima e não de culpado. Nem um tanquezinho sequer foi para as ruas ajudar o povo ou derrubar o presidente. Nem um soldadinho que seja foi visto invadindo a sede do governo ou insurgindo contra o governo. Morales se apoiou em uma cena grotesca. Seis oficiais barrigudos, que a vida inteira fizeram juras de amor ao presidente, posaram para a imprensa e recomendaram ao presidente que renunciasse.
Assim Morales deixou o país e manchou a revolta popular contra os seus golpes, invertendo o seu papel na história.
Jeanine Áñez, que não fez absolutamente nada para a Bolívia se livrar de Morales, herdou o governo por estar na linha de comando. Assumiu o país e montou um governo corrupto. Estes sim os crimes pelos quais deveriam ser julgados e punidos.
Nos meses seguintes vieram a pandemia de covid-19 e as dificuldades próprias de tentar levar para frente um estado criminalizado como a Bolívia. Tinha tudo para dar errado.
Os “heróis” dos protestos e os líderes opositores começaram a se canibalizar pelo poder. E ao final do dia, o Movimento ao Socialismo, o partido de Evo Morales, voltou ao poder pelas pelo voto de gente desiludida pelo fracasso de Áñez, seu entorno e a crise que muito além das incompetências daquele governo provisório, deixou a Bolívia ainda mais perto do caos.
A condenação de Áñez é política. É o justiçamento de um Estado jagunço. A Democracia segue morrendo na Bolívia e nós vamos assistindo passivamente. Em certa medida, muita gente até aplaude.
Para o Brasil fica um conselho. A triste Bolívia não é tão longe quanto parece.