Eleições são o símbolo máximo da democracia. Duas palavras tão comumente associadas se confundem e servem para causar confusão. O voto é um dos pilares das democracias. Um dos pilares. Mas sem uma série de outros ingredientes como transparência, justiça e liberdade, elas são apenas uma figuração ou o caminho para destruição da própria democracia.
Na Coreia do Norte, por exemplo, as eleições são um fenômeno extraordinário. Sempre com taxa de participação de 100%, os indicados pelo partido único recebem 100% dos votos. Cuba, a ilha da fantasia da esquerda brasileira, também tem eleições. Uma anomalia na qual o partido único convoca o povo para validar candidatos locais e depois regionais que elegem indiretamente o presidente. O teatro eleitoral se repete na China e na Síria. Em 21 anos de chavismo foram realizadas vinte eleições nacionais na Venezuela. Uma overdose que foi empregada como parte do processo que levou o país sul-americano ao colapso institucional.
E como estão as coisas nos Estados Unidos? A cada quatro anos a imprensa brasileira gasta tinta e tempo de transmissão para explicar o complexo sistema de colégios eleitorais que formam a base do sistema eleitoral americano – modelo, por sinal, bem arcaico, que surgiu como uma espécie de blindagem para líderes populistas, mas acabou perpetuando distorções: leva quem vence nos colégios eleitorais e não necessariamente na preferência popular. Quase sempre as duas vitórias vêm acompanhadas, mas recentemente os EUA viveram dois casos nos quais quem venceu no voto não foi o eleito.
Agora, o presidente Donald Trump apontou um problema adicional. A possibilidade de fraude em caso de uma eleição massiva pelos correios, para evitar o risco de contágio pela covid-19. Seus críticos veem como paranoia (palavra da moda), mas tendo a crer que Trump pode, sim, estar muito certo, mas pelos motivos errados.
Nem de longe o voto pelo correio é o principal problema das eleições nos Estados Unidos. Em quinze Estados americanos e em Washington, D.C. – que juntos concentram 43% da população –, os eleitores não são obrigados apresentar nenhum tipo de identificação na hora de votar. Por sinal, é ilegal exigir deles qualquer tipo de documento. Em outros catorze Estados, que abrigam outros 14% dos eleitores, basta apresentar qualquer fatura de cartão de crédito ou conta de luz como comprovante de identidade: na maior democracia do planeta, 57% dos eleitores vão às urnas na base do fio do bigode.
Em um sistema baseado na confiança, os americanos penhoram sua democracia no comprometimento dos cidadãos e no respeito às leis. Afinal quem é pego votando no lugar do outro, mais de uma vez ou sem o direito de votar, vai preso. Mas como verificar?
Está cada vez mais evidente o buraco negro de fragilidades do sistema eleitoral americano. A falta de identificação dos eleitores abriu a porta para um possível universo de fraudes. Sim, fraudes. Na ausência de uma central nacional de registros eleitorais, como o TSE brasileiro, é muito comum que eleitores tenham registros em vários Estados. Em pontos do país como a região de Washington, D.C., por exemplo, uma pessoa mal intencionada pode votar três vezes atravessando as fronteiras que separam a capital de Maryland e Virgínia, dois Estados vizinhos, com a mesma facilidade de quem vai da Avenida Paulista, em São Paulo, ao bairro do Morumbi.
A falta de exigência de identificação permite até que imigrantes votem. Algo proibido por lei nos Estados Unidos. São crescentes as queixas de que possa existir uma legião de imigrantes (muitos deles ilegais) registrados para votar nos Estados Unidos. Estados conhecidos por funcionarem como santuários para esses imigrantes geralmente perguntam se eles gostariam de se registrar para votar quando eles recorrem aos serviços públicos, como tirar carteira de habilitação ou se registrar para um seguro de saúde. Uma pergunta prevista em lei, mas que só deveria ser feita depois de uma bem elementar: “Você é cidadão?”
Não há números claros sobre quantos imigrantes podem estar registrados ilegalmente para votar. Há estimativas que existam pela menos 90 mil eleitores ilegais apenas no Estado do Texas. Em 2012, a Flórida identificou 180 mil eleitores que se registraram sem ser cidadãos. Um problema que as autoridades americanas evitam enfrentar.
A questão aqui não é a discussão em torno do voto de “estrangeiros”. Hoje um em cada dez eleitores registrados nos Estados Unidos são imigrantes que se naturalizaram. Portanto são perfeitamente aptos a votar. Provavelmente nenhum lugar do mundo tem mais eleitores provenientes de outros países que os Estados Unidos.
A discussão passa pelo aspecto meio esculhambado do sistema eleitoral americano. De acordo com o Pew Research Center, em 2017 havia cerca de 25 milhões de não-cidadãos vivendo nos EUA. Metade deles residentes permanentes (donos dos chamados Green Cards), uma pequena parcela trabalhando ou estudando legalmente (2,2 milhões) e outros 10,5 milhões de ilegais.
Em 2016, a Rússia espalhou uma lorota de que eles eram capazes de manipular as eleições americanas plantando notícias falsas o Twitter. A imprensa americana comprou essa bobagem. Nocauteados, os democratas amplificaram o conto que os eximia da culpa de não prestar a atenção na América real que existe fora do eixo bacaninha de Nova York-D.C.-São Francisco.
É preciso ser muito bocó para acreditar que tias do zap podem mudar o rumo de uma eleição. Bobagem que contaminou muita gente no Brasil, que saiu atordoada da eleição de 2018 sem entender o que havia se passado nas urnas.
Na Venezuela de Chávez e agora de Nicolás Maduro, a fraude eleitoral nunca foi comprovada, porque simplesmente ele não existe fisicamente nas urnas. Lá a fraude é construída com pressão sobre o eleitor que é coagido a votar pelo governo, sob pena de perder o emprego público ou benefício social. Os chavistas controlam o voto pelo medo. Os tontos da oposição venezuelana sempre saíram com cara de tacho das recontagens de votos, porque a fraude chavista é indetectável em auditorias.
No Brasil, o derrotado Aécio Neves alegou fraude nas urnas eletrônicas. O bocó viu a sua queixa virar pó pelo simples fato de que as urnas brasileiras são impossíveis de serem auditadas. Não vou entrar no mérito se são seguras ou não. A questão é que não dá para comparar a informação que as urnas produzem. Elas geram infinitamente uma cópia do extrato original usado na apuração. É como comprar uma cópia xerox com outra. Pois diferentemente da Venezuela, onde há voto impresso para cotejar, as urnas brasileiras são apenas um espelho que reflete a imagem delas mesmas.
De volta aos Estados Unidos, que irá às urnas em novembro: a maior democracia do planeta tem um sistema eleitoral que pode estar comprometido por fragilidades que não tem nada a ver com a indústria de desinformação da Rússia ou o voto pelo correio. O mais chocante é que nada mudará até lá.