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O regime comandado por Xi Jinping voltou a ser visto exatamente como ele é. Eis a boa. A leitura do noticiário americano nas primeiras semanas de 2021 sugere que a China não contará mais com o mesmo ambiente amistoso que nos últimos quatros foi útil às ambições de Pequim. O que mudou? Donald Trump se foi. Evidentemente não há prova alguma que comprove a tese, mas o antitrumpismo que tomou conta das redações, dentro e fora dos Estados Unidos, desde o primeiro minuto de sua eleição em novembro 2016, pavimentou o caminho para um tipo de visão de mundo "se é contra Trump é nosso aliado" ou "se Trump é contra é nosso amigo". Lógica idêntica que se abateu sobre uma parcela da classe política que, embora tivesse a mais perfeita compreensão do estava do outro lado, sabia que não podia reforçar o discurso do então presidente.
Nas últimas semanas, o regime chinês não tem sido poupado. Sua estrela Huawei apareceu no The Washington Post como cúmplice da escravidão dos uigures. Em um intervalo de uma semana, o The New York Times mostrou o sistema de trabalho forçado na China, colocou em xeque a diplomacia da vacina chinesa e apontou o dedo para Xi Jinping, como o homem com potencial para desestabilizar o mundo e ser o pesadelo de Joe Biden.
A mudança também pode vir da Casa Branca. Até o fechamento desta coluna, analistas estavam ouriçados com a lista de países com os quais o secretário de Estado Anthony Blinken já havia interagido. A falta do Brasil chamou a atenção entre os brasileiros, o que é de se esperar em um mundo em que as pessoas – e não só as do Brasil – gostam mesmo é de falar delas mesmas. A grande ausência na lista de chamadas de Blinken era a da China.
O que não significa irrelevância. Muito pelo contrário. O intervalo de mais de duas semanas, desde o início do governo, sem uma chamada oficial carrega uma informação. Qual é? É difícil responder.
Sem Trump no poder, ninguém mais precisa fingir não ver o que o regime chinês é. A boa notícia termina por aqui.
Na porção sul das Américas, o Brasil replica com um atraso bestial o fenômeno descrito acima. Obviamente repleto de peculiaridades, o caso brasileiro pode ser cotejado com o americano naquilo que é essencial. A China encontrou no antibolsonarismo a backdoor por meio da qual infestou setores estratégicos sejam eles na imprensa, política, agronegócio e até as entranhas do próprio governo brasileiro.
A polarização política brasileira deu à China o poder de emplacar suas versões e vontades com muito pouco esforço e muito colaboracionismo.
"Se é contra Jair Bolsonaro é nosso aliado" ou "se Bolsonaro é contra é nosso amigo".
Está acontecendo exatamente o que se passou nos Estados Unidos até a posse de Biden, mas com um agravante. Sem mecanismos de proteção moral e legal – e para agravar quebrado –, o Brasil ficou fácil e barato de conquistar.
Começando pelo jornalismo. A cobertura é um amor. Xi Jinping é mais fofo que Winnie the Pooh, o ursinho que jocosamente passou a ser comparado às características físicas do ditador chinês. Aliás suas frases de grande sabedoria podem ser ouvidas na TV brasileira. E não só. Todos os dias há quem se disponha a replicar as mensagens da embaixada chinesa como se fossem notícias.
Quando o assunto é política, o negócio ficou ainda mais evidente. O governador de São Paulo viu o dragão passando selado e montou em cima. Está voando alto – ou baixo, dependendo do ponto de vista – na carona oferecida pelos chineses. O estado mais rico e populoso do Brasil abriu as portas para a China ampliar sua influência para além da pressão que já havia sido consolidada por meio do agronegócio.
Por meio de um mutualismo ficcional, os chineses parecem oferecer as condições de um jogo de ganha-ganha, mas ao fim do dia estão levando tudo.
Incapazes de oferecer doses de vacina suficientes para a própria população, o regime de Xi Jinping não tem como atender a demanda mundial e suprir as expectativas criadas em países como o Brasil. Mas eles conseguem usar a seu favor o ambiente político que permite que eles não só saíam ilesos do que deveria ser uma crise.
Embalados pelo antibolsonarismo, os chineses mandaram recado, por meio da imprensa e políticos, que a culpa da falta de vacinas era do Brasil. Ou mais precisamente do governo brasileiro. O gabinete do presidente foi invadido por ministros e conselheiros rogando por rendição. Não por acaso, uma solução para a chinesa Huawei nas redes 5G no Brasil saiu da cartola no meio da confusão. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Dizem todos os lados envolvidos.
No meio do pacote, os chineses empurram por meio do senador Irajá (PSD/TO) um projeto de lei que permite que até 25% da área de município possa ser vendido para estrangeiros. Uma demanda antiga que a mãe de Irajá, a também senadora Kátia Abreu, há tempos tenta aprovar. Uma mudança essencial para Pequim que deseja eliminar a necessidade de atravessador para o acesso aos produtos agrícolas fornecidos pelo Brasil.
A Brachina é uma fusão inevitável devido às complementariedades das economias. Mas qual é a vantagem que tiramos, como país, desta relação? O Brasil insiste em se deixar enganar. Não faltam porta-vozes para nos convencer que somos dependentes. Faltam especialistas para nos lembrar de os chineses dependem de nós.
Como em qualquer mutualismo temos que ter vantagem. Sem a mão-dupla vira parasitismo. E ao final só um tira vantagem enquanto o outro adoece ou tem destino pior.
Bastou Trump desaparecer para os americanos voltarem a ver a China como é. Demorou, mas tem acontecido em tempo de poder ajustar o rumo. O Reino Unido e França estão entre aqueles que também já se deram conta da furada que é permitir o regime chinês operar livremente dentro de seus países.
No Brasil, tudo indica, não será assim. Quando o antibolsonarismo não tiver mais sentido, pode não haver mais margem para um ajuste de rota. Eis a má notícia.