Apenas uma semana depois de o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) concluir que Nicolás Maduro cometeu crimes contra a humanidade, a mesma ONU transmitiu o discurso do ditador venezuelano na sessão de abertura de sua 75ª Assembleia Geral.
A fala de Maduro é insólita, mas a ONU é assim. Recentemente, a Venezuela ganhou um assento no mesmo conselho que, com sete anos de atraso, emitiu um relatório que ratifica o que os jornais e os próprios venezuelanos expuseram ao longo de anos de violências explícita. Maduro é um criminoso que, inevitavelmente, terá que ser julgado pela Corte Internacional de Direitos Humanos um dia. Mas enquanto esse dia não chega, a ONU segue sendo um palanque.
Em seu discurso, no qual extrapolou o tempo previsto, Maduro seguiu o roteiro de sempre. Saudou os aliados chineses, russos e cubanos e cravou que a solução para crise causada pela Covid-19 virá desses países irmãos que proverão acesso universal aos medicamentos e vacinas que estão por vir.
Fiel ao manual dos ditadores latino-americanos, Maduro transferiu a culpa de todas as mazelas da Venezuela para os Estados Unidos. Os americanos, segundo ele, são a origem de todo o mal que empurrou para fora das fronteiras venezuelanas mais de 5 milhões de pessoas naquele que é o maior êxodo vivido por um país que não está em conflito bélico.
No mesmo dia, Juan Guaidó – um deputado desconhecido que, em janeiro de 2019, na figura de presidente encarregado da Venezuela, ganhou fama global – anunciou em suas redes sociais que também faria o seu discurso “no âmbito” da 75ª Assembleia Geral da ONU.
Guaidó deu um nó na cabeça de muita gente. Seria a primeira vez que dois presidentes do mesmo país falariam na mesma sessão da ONU?
Horas depois, Guaidó estava online transmitindo as suas palavras presidenciais. Comportando-se como quem falava na sede da Nações Unidas, o venezuelano transmitiu o que não passava de um simulacro de discurso na ONU. Como quase tudo em sua presidência sem poderes efetivos, Guaidó tentou marcar posição e enviar uma mensagem para seus compatriotas de que ainda está no jogo.
Cada vez menos, mas está.
Para mais de meia centenas de países – entre os quais estão os que compõem a União Europeia, além de Estados Unidos, Canadá, Austrália e o Brasil – Guaidó é o presidente legítimo da Venezuela. As maiores democracias ocidentais não reconhecem Maduro, que se reelegeu em 2018 em um processo fraudulento que violou as leis internas e as regras mais elementares reconhecidas pelos sistemas internacionais.
Em meio a uma série de tensões, Guaidó foi empossado em janeiro de 2019 com a missão de conduzir o país para uma nova eleição após saída de Maduro. Mas o ditador resistiu. Maduro não só não caiu como se fortaleceu, fazendo arranjos com as máfias que atuam dentro de seu governo e com as forças política locais (entre as quais algumas supostamente opositoras) e ganhou um reforço de seus parceiros extrarregionais para manter as engrenagens de sua economia.
Guaidó ganhou uma legitimidade colossal frente a Maduro. Mas sem o controle do aparato estatal, Guaidó se transformou em uma espécie de presidente cujos poderes só existem da porta para fora. Nomeia embaixadores nos países que o reconhecem. Transita com desenvoltura com presidentes da América Latina, Europa e Estados Unidos. Mas dentro da Venezuela, Guaidó tem menos influência do que um síndico de condomínio. Seus atos não são executados por ninguém da estrutura governamental.
Maduro, por sua vez, está se lixando para a legitimidade que lhe foi negada pelo mundo democrático. Ele quer o poder. O ditador venezuelano sabe que somente por meio poder ele se mantém no Palácio de Miraflores. Maduro governa pelo bom funcionamento do Estado criminalizado que Hugo Chávez ergueu e ele aprimorou e a proteção de seu status. O mesmo que o levou a falar na ONU em vez de Guaidó.
Para se ter ideia do paradoxo que é ter dois presidentes disputando a mesma terra, interpretações distintas de uma mesma Constituição e o poder estatal, é importante comparar como a ONU e a Organização dos Estados Americanos (OEA) tratam a questão.
Apenas uma hora de voo separa as sedes da ONU, em Nova York, da OEA, em Washington, D.C. Mas quando o assunto é Maduro-Venezuela-Guaidó, a distância entre os dois organismos internacionais parece ser espacial.
Como ficou claro até o momento, apesar de reconhecidamente um bandido, Maduro segue sendo presidente da Venezuela para ONU. Mas na OEA – órgão mais antigo que as Nações Unidas e que faz parte do mesmo sistema – o presidente é Juan Guaidó.
A queda de braço entre o legítimo (mas sem poderes) Guaidó e o poderoso e usurpador Maduro tem resultados bem sinistros para os venezuelanos.
Em março, Maduro bateu à porta do FMI para pedir ajuda para combater os efeitos da pandemia da Covid-19. Recebeu um não. Na justificativa, o FMI foi direto: como não há clareza sobre o reconhecimento de Maduro como presidente, a entidade não pode considerar os seus atos.
No outro extremo, Guiadó promete mundos e fundos para os venezuelanos, mas nada chega. A primeira evidência da incapacidade da oposição em construir um governo paralelo ficou clara no fracassado intento de ingressar com ajuda humanitária na Venezuela, ainda nas primeiras semanas de presidência de Guaidó.
Depois, vieram tentativas de sublevações militares fracassadas e promessas não cumpridas.
Como Maduro não joga com as regras políticas ou democráticas, o regime tende sempre a ganhar vantagem sobre o opositor cada vez mais figurativo. A pobre Venezuela vai se atolando cada vez mais.
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