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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Amizade perigosa

Trumputinisno

Donald Trump e Vladimir Putin em foto de 2018, durante encontro em Helsinque, na Finlândia. (Foto: Matti Porre/Office of the President of the Republic of Finland)

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A semana começou com o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump dando um calor nos países europeus. Falando para a sua base – que confunde isolacionismo com patriotismo –, ele relembrou o questionamento de um “presidente de um grande país europeu”, em meio a uma discussão sobre as obrigações dos membros para com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Quando era presidente (2017-2021), Trump sempre exteriorizou o seu descontentamento com os países europeus que não cumpriam com suas obrigações acordadas de investimento mínimo de 2% de seus orçamentos em defesa. Ele chegou a ameaçar retirar as tropas americanas estacionadas na Europa, mas nunca havia surgido publicamente a inflexão que sua administração chegou a cogitar.

Segundo Trump, depois de cobrar que os europeus cumprissem os compromissos orçamentários, o tal “presidente de um grande país europeu” retrucou: “Se não pagarmos e a Rússia nos atacar, você nos protegerá?”

A resposta foi não – e, como se não bastasse, Trump relatou que na realidade encorajaria a Rússia a fazer o que bem entendesse.

Existe um abismo entre cobrar mais responsabilidade dos europeus para com a própria defesa e a decisão de abandoná-los diante de um inimigo comum

A revelação do agora pré-candidato à presidência dos Estados Unidos soou como uma daquelas sirenes de alerta de bombardeio. Ela se deu em um momento crítico da guerra da Ucrânia, no qual os Estados Unidos, sob Joe Biden, já reduziram a ajuda financeira aos ucranianos e Trump tem se mostrado cada vez mais forte e perto de voltar à Casa Branca.

As falas de Trump, tanto no passado quanto nesta semana, podem ser um jogo de cena para forçar a Europa a começar a se mexer para melhorar as suas próprias capacidades de defesa. Também pode ser vingança. Quem não se lembra de como o americano, mesmo sendo o presidente do país que, sozinho, investe na defesa da Europa mais do que os outros 29 membros da Otan juntos, foi alvo da chacota dos colegas no evento que celebrava os 70 anos da aliança militar?

Para muitos americanos, que aplaudem o discurso de Trump, é difícil compreender a razão de seus impostos serem utilizados para proteger países que não assumem a responsabilidade pela sua própria defesa. A comparação se torna ainda mais frustrante quando os americanos se veem obrigados a pagar por tudo – como a universidade dos filhos e o plano de saúde. Enquanto alguns países europeus dão subsídios para licenças-maternidade remuneradas de meses, nos Estados Unidos não existem políticas federais que concedam este benefício. O paralelo do guarda-chuva social europeu com a falta dele nos Estados Unidos chega a ser cruel. Na Finlândia, que no ano passado passou a fazer parte da Otan, os “pais de pet” também ganham dias de folga remunerada para cuidar de seus bichinhos.

Mas existe um abismo entre cobrar mais responsabilidade dos europeus para com a própria defesa e a decisão de abandoná-los diante de um inimigo comum.

Ao usar frustrações legítimas como plataforma de campanha para seu retorno à presidência, Trump ensaia um suicídio geopolítico. Se ele for eleito e colocar em prática o que promete, ele dinamitará a já cambaleante confiança nos Estados Unidos. Jogar para a plateia é um recurso mesquinho que não vai fazer a América grande de novo. O efeito será o oposto.

Trump está usando a política externa dos Estados Unidos para fazer política doméstica. Para ressaltar o que é evidente – que o presidente Joe Biden tem se mostrado incapaz de lidar com conflitos não convencionais no exterior e que a crise migratória na fronteira sul é resultado de um governo que prefere cuidar da Ucrânia a proteger-se da invasão de imigrantes ilegais –, o republicano incorpora o inimigo.

Os republicanos aqui nos Estados Unidos, os bolsonaristas no Brasil ou os voxistas da Espanha – apenas para ficar em três exemplos – estão caindo juntos na mesma armadilha de idolatrar Putin como um homem antiglobalista e conservador.

Embora Trump possa ser capaz de resolver alguns dos problemas criados por Biden, a sua política externa é uma ameaça em uma escala maior. Carregada de ignorância e arrogância, ela pode afastar ainda mais os Estados Unidos de sua já contestada liderança hemisférica, pois a mundial já está respirando por meio de aparelhos.

Putin está inabalável. Mais do que isso, até. Ele se sente apoiado. Trump tem grandes chances de voltar. Ele sabe que, com o americano, o papo é cabuloso

Sabe-se lá por que razão Trump ajudou a reabilitar Putin quando a Europa e o mundo livre ainda cobravam dele as responsabilidades pela invasão da Crimeia, em 2014, e seu papel central no suporte ao regime de Bashar al-Assad, na guerra civil da Síria.

O trumpismo anda tão apaixonado por Putin que enviou para lá o seu garoto-propaganda favorito para descrever com admiração como a Rússia é um lugar bacana injustiçado pela propaganda ocidental. Tucker Carlson, que se apresenta como jornalista, se transformou na voz de Moscou nos Estados Unidos. Mais eficientes que as estatais russas, que não são capazes de chegar com a mesma eficiência aos lares dos direitistas hipnotizados com a propaganda de Carlson.

O resultado desse hibridismo político talvez um dia ganhe o nome de trumputinismo. Um nome horrível na justa medida do resultado da quimera.

Cinco dias depois de Trump relembrar que estimularia a Rússia de Putin a fazer o que bem entendesse com a Europa caso os europeus não pagassem suas contas com a Otan, o regime russo anunciou que o maior crítico de Putin havia morrido, “vítima de um mal súbito” enquanto caminhava sem horário de banho de sol. Alexei Navalny tinha 47 anos e estava na prisão desde 2021. Blogueiro, advogado anticorrupção e ativista político, ele incomodou tanto que, um ano antes de sua prisão, ele quase morreu depois de ter sido envenenado pela turma de Putin.

É preciso muita boa-fé, ingenuidade ou estupidez para acreditar que Navalny morreu vítima de um acidente vascular, segundo descreveram as autoridades russas. Ele foi morto. E por que foi morto agora? Por que Putin se sentiu tão à vontade para fazer isso agora? São respostas impossíveis de serem obtidas.

Mas há uma coisa inegável. Putin está inabalável. Mais do que isso, até. Ele se sente apoiado. Trump tem grandes chances de voltar. Ele sabe que, com o americano, o papo é cabuloso. Enquanto isso não chega, ele tem o apoio incondicional de gente miúda, mas capaz de engrossar o seu orçamento e “legitimidade”, entre os quais estão o venezuelano Nicolás Maduro, o sul-africano Cyril Ramaphosa e, claro, Luiz Inácio Lula da Silva.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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