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Chamou a minha atenção um recorte da fala do chanceler alemão Olaf Scholz no último Fórum Econômico Mundial, em Davos, na semana passada. Scholz, que está demissionário, disse mais ou menos o seguinte: “Existe liberdade de expressão na Alemanha. Qualquer um pode falar o que quiser, até um milionário. Mas não podemos aceitar posições de extrema-direita”.
Foi uma fala bastante reveladora da pandemia de naturalização da censura que vem tomando conta do Ocidente nos últimos anos. Ora, o chanceler começa sua fala defendendo a liberdade de expressão, para em seguida... negá-la. Aliás, por que um milionário (Elon Musk, no caso) não deveria ter direito a falar o que quisesse? Deixar Musk falar é por acaso uma concessão de Olaf Scholz, como sugere o “até”?
Mas a pergunta necessária, que ninguém fez ao chanceler alemão, é: “Quem decide o que é uma posição de extrema-direita? Políticos de esquerda, como o senhor?”
Porque a mensagem é esta: “Somos contra a censura, a não ser nos casos em que ela nos interessa". Aí a censura se faz necessária. E basta colar no adversário o rótulo de extrema-direita para legitimar o fim da liberdade de expressão.
No caso alemão, parece que o rótulo se aplica, por exemplo, a quem critica a imigração descontrolada. Qualquer pessoa que defenda políticas de entrada no país mais restritivas, ou a deportação de imigrantes ilegais, já se enquadra naqueles casos “excepcionalíssimos” em que a censura é conveniente.
Pois bem, a situação na Alemanha não é boa. A economia se deteriora a olhos vistos. Acredite o leitor ou não, a inflação alemã é maior que a inflação oficial brasileira. Tudo isso levou ao colapso a coalizão liderada por Scholz, daí a antecipação da eleição para o Parlamento (Bundestag) para o próximo dia 23 de fevereiro.
O problema é que a popularidade do partido AfD (Alternativa para a Alemanha), fundado em 2013, vem aumentando absurdamente. Já está em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, muito à frente dos social-democratas.
Mas também aumentam, na mesma proporção, as tentativas de desqualificar a AfD e seus líderes como extremistas, o que permitiria, inclusive, a extinção sumária do partido. Não faltam campanhas orquestradas para colar em Alice Weidel e outros líderes da AfD a pecha de nazistas.
A própria Justiça alemã já manifestou apreensão com o fato de boa parte do eleitorado pretender votar na direita. Que absurdo! Não podemos aceitar uma coisa dessas! Ainda bem que isso não acontece no Brasil.
Seria mais prudente tentar entender por que dezenas de milhões de alemães comuns estão apoiando a AfD, em vez de desqualificá-los como extremistas de direita. Se a AfD conquistou amplo apoio popular, cassar o partido não seria uma violação da vontade popular, o principal pilar da democracia?
A pergunta merece reflexão. Por definição, a democracia deve respeitar a vontade da maioria. Por outro lado, ela também precisa garantir a proteção dos direitos fundamentais e das instituições.
É com essa justificativa, aliás, que muitos países proíbem a existência de partidos verdadeiramente nazistas e de partidos verdadeiramente comunistas – porque ambos ameaçam, verdadeiramente, liberdades e direitos dos indivíduos. Isso já aconteceu na própria Alemanha, que proibiu, na década de 1950, o Partido Socialista do Reich (SRP), em 1952, e o Partido Comunista Alemão (KPD), em 1956.
Está cada vez mais fácil censurar, perseguir e mandar prender qualquer adversário político: basta alegar que ele representa uma ameaça à democracia e ao Estado de Direito
O filósofo Karl Popper chamou essa necessidade de conciliar a vontade da maioria com a defesa das instituições de "paradoxo da democracia". Até pouco tempo atrás, isso não era um problema. Todas as democracias encontravam maneiras eficazes de alcançar o equilíbrio.
O problema começa quando se abusa do paradoxo para criminalizar não políticos e partidos realmente nazistas (ou realmente comunistas), mas qualquer político ou partido que defenda uma agenda diferente daquela de quem está no poder. Porque aí fica fácil censurar, perseguir e mandar prender qualquer adversário: basta alegar que ele representa uma ameaça à democracia e ao Estado de Direito.
Ora, é o que parece estar acontecendo na Alemanha. Pelo menos é o que sugere um rápido exame das propostas contidas no programa oficial do partido AfD, que resumo a seguir.
Imigração e segurança:
Desde a crise de 2015, quando o país recebeu mais de um milhão de refugiados, a questão da imigração se tornou central na política alemã, levantando questões sobre o terrorismo, o impacto na economia e a identidade nacional.
A AfD argumenta que a imigração em massa prejudica os cidadãos alemães e defende a necessidade de limitar a entrada de imigrantes, especialmente de países muçulmanos, além da deportação imediata dos que estão ilegalmente no país.
Além disso, o partido é crítico ao Islã, que considera uma ameaça aos valores alemães, e defende medidas como a proibição do uso da burca em espaços públicos. Os recorrentes casos de estupros cometidos por imigrantes ajudam a entender a popularidade da proposta.
Política externa:
A AfD defende a saída da Alemanha da União Europeia, como fez o Reino Unido, e o retorno do marco alemão, abandonando o euro. O partido argumenta que a UE fracassou em seus objetivos e interfere demais na soberania do país. E propõe a criação de uma nova comunidade europeia, baseada em interesses comuns e soberania nacional.
Economia:
A AfD defende a redução de impostos e a diminuição da intervenção estatal na economia. O partido propõe, por exemplo, a redução do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dos atuais 19% para 7%, para aliviar a carga tributária sobre os cidadãos e estimular o consumo. (Só para lembrar: o IVA aprovado na recente reforma tributária brasileira deverá superar 28%).
Cultura e identidade nacional?
O partido promove valores conservadores, enfatizando a importância da família. Enfatiza a preservação das tradições culturais e da língua alemã, promovendo políticas que reforcem a identidade nacional. O partido se opõe ao multiculturalismo, argumentando que ele pode levar à fragmentação social.
Política energética e ambiental:
A AfD é cética em relação às políticas de combate às mudanças climáticas e se opõe a medidas que considera prejudiciais à economia alemã, como a transição para fontes de energia renovável. O partido defende a reativação de usinas nucleares e a continuidade do uso de combustíveis fósseis para garantir a segurança energética da Alemanha - concretamente ameaçada pela Guerra da Ucrânia, já que o país depende hoje, em larga escala, da importação do gás russo.
Em resumo, o programa da AfD reflete uma visão nacionalista e conservadora, com ênfase na soberania nacional, no controle rigoroso da imigração. Revela ceticismo em relação a políticas ambientais e à integração europeia. Defende a família tradicional e se opõe a políticas identitárias.
São propostas discutíveis, eventualmente controversas. Não sei se eu seria favorável à reabertura de usinas nucleares, por exemplo. Mas, na França de Emmanuel Lacron, digo, Macron, estão em operação quase 20 usinas nucleares, com dezenas de reatores, e ninguém se escandaliza com isso.
Pergunta sincera: qual dessas propostas da AfD pode ser considerada extremista, a ponto de se cogitar cassar o partido?