Entrada principal do British Museum, em Londres| Foto: Ham II/Reprodução/Wikimedia Commons
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Um artista brasileiro está causando controvérsia em Londres por conta de uma - digamos assim - intervenção, realizada no mês passado. A intervenção consistiu em furtar uma moeda de prata do século 17 de uma coleção do British Museum, e substituí-la por uma réplica sem valor. A moeda original, cunhada em 1645 durante a Guerra Civil Inglesa, que opôs os partidários do Rei Carlos I aos revoltosos liderados por Oliver Cromwell, não chegou a sair do prédio: foi depositada em uma caixa de doações do próprio museu​.

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O furto, gravado por três amigos do artista, foi transformado em um vídeo de sete minutos e integra uma instalação que fez parte de seu projeto de mestrado no Goldsmiths College, na Universidade de Londres. Intitulado “Sleight of hands” (algo como “golpe de mão”), o projeto propõe, aspas, “discutir questões de roubo e pilhagem na história”. A intervenção foi planejada ao longo de mais de um ano e incluiu diversas visitas do artista ao museu, além da assessoria de uma equipe jurídica.

Em uma entrevista, o artista brasileiro afirmou acreditar que sua obra “abre uma discussão sobre roubo e pilhagem tanto no contexto histórico quanto a partir de uma perspectiva neocolonial dentro das instituições culturais contemporâneas”. Ele critica instituições como o British Museum e o Museu do Louvre, que se consideram guardiãs dos tesouros da humanidade, mas que na realidade representam culturas imperialistas que saquearam povos colonizados.

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A moeda furtada integra uma “coleção de manuseio”, iniciativa criada em 2000 para proporcionar aos visitantes do museu a oportunidade de tocar em objetos históricos, sob a supervisão de voluntários. O artista teve a ideia do furto quando viu um funcionário entregar moedas aos visitantes, para que pudessem manuseá-las. Finalmente, no último dia 18 de junho, ele se aproveitou de uma distração do funcionário para trocar a moeda histórica pela réplica.

O British Museum se pronunciou por meio de um porta-voz: “Este é um ato decepcionante, que abusa de um serviço liderado por voluntários, que visa dar aos visitantes a oportunidade de manusear itens reais e interagir com a história. Serviços como este dependem de um nível básico de decência e confiança humana, e seria uma pena ter que rever a prestação destes serviços devido a ações como esta.” O porta-voz também informou que a polícia seria notificada sobre o incidente.

O artista e seu advogado argumentam que nenhuma lei ou norma do museu foi violada, já que a moeda não chegou a ser retirada do prédio. O argumento me parece estranho, já que um furto independe do destino do objeto furtado. Fosse assim, um ladrão arrependido, que largasse o objeto roubado em uma lata de lixo, seria inocente do roubo. Aliás, não foi informado se a moeda já foi recuperada e reintegrada à coleção, nem se os visitantes poderão continuar a interagir com peças do acervo.

Na maioria dos países, a legislação relativa a museus e instituições culturais costuma ser bastante rigorosa na proteção da integridade e segurança dos acervos. Mas, no caso específico, pode existir alguma brecha jurídica, não sei. A questão da legalidade ou ilegalidade da intervenção é algo a ser resolvido pela justiça britânica. Consequências desagradáveis não podem ser descartadas.

Furtar uma moeda de um acervo ganha ares de intervenção artística subversiva e transgressora, que o artista justifica apontando o dedo para antepassados

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Mas não é este o ponto. Qualquer argumentação jurídica usada como escudo contra medidas legais ignora o aspecto principal da nota divulgada pelo British Museum: a decência e a confiança como pressupostos do convívio em sociedade. E, a julgar pelo que foi noticiado, faltou decência e sobrou abuso de confiança no episódio.

Não é uma questão legal, é uma questão moral. Quem abre as portas para um visitante imagina que ele não se aproveitará de uma distração para furtar um objeto, seja qual for a justificativa apresentada depois (muito menos se for uma moeda do século 17, de inestimável valor histórico). Aliás, a justificativa, no caso, foi mais que previsível em tempos de lacração: chamar a atenção para o grande número de objetos estrangeiros que o British Museum expõe, como "parte fundamental do sistema colonial e imperialista".

Oh! Sério que ninguém tinha reparado nisso? Ninguém sabia que o acervo do British Museum abriga milhares de itens trazidos das colônias do antigo Império Britânico? De que forma, exatamente, furtar uma moeda, registrar o furto em vídeo e exibi-lo como parte de um projeto de mestrado, contribui para "corrigir" a história? E de que forma os descendentes dos povos colonizados serão beneficiados?

Porque, até aqui, o único beneficiado foi o próprio artista, que conseguiu os holofotes que almejava, na arte de chamar a atenção ostentando virtude: é o "furto do bem". Já entre os potenciais prejudicados estão, é claro, os milhares de visitantes diários do British Museum, que podem perder a chance de tocar em peças de um passado remoto e interagir com a história.

É evidente que parte do acervo de muitos museus da Europa foi obtida de forma questionável, hoje percebida como criminosa, em um passado remoto. Isso não justifica moralmente um furto. Além do mais, já existem processos legais e diplomáticos em andamento, para lidar com reivindicações de restituição de bens culturais a países de origem.

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Parafraseando George Orwell, o truque é bastante simples, tão simples que só os intelectuais caem nele: pessoas comuns jamais cairiam. Por um “golpe de mão”, furtar uma moeda do acervo de um museu ganha ares de intervenção artística subversiva e transgressora, que o artista justifica apontando o dedo para uma dívida deixada por nossos antepassados. Furtar, na verdade, é apenas se vingar das atrocidades cometidas séculos atrás por colonizadores contra colonizados.

É a lógica da dívida impagável, da reparação impossível, da retribuição da violência ancestral, que justifica tudo. Por que o mesmo raciocínio não valeria para a reparação de crimes maiores do passado, que redimem qualquer delito presente? Como brasileiros vítimas da colonização, estaríamos autorizados a perseguir europeus, pelos crimes que cometeram 500 anos atrás; no limite, teríamos até o direito de estuprar e matar, já que foram incontáveis os episódios de estupro e extermínio cometidos contra os nossos antepassados.

Chamar a atenção para atrocidades do passado não apenas me inocenta e legitima, se sou artista: me traz aplauso, reconhecimento dos pares e celebridade, que, aliás, é o que importa na arte contemporânea. Porque, se eu sou um artista, não sou apenas inimputável: eu estou acima da lei e não tenho nenhum dever moral de respeitar os rudimentos do convívio em sociedade, começando por não furtar.

Mas não apenas isso: eu sou estimulado, reconhecido e premiado por um sistema que legitima esse tipo de impostura. Porque o que não faltam são pessoas aplaudindo a erosão dos valores mais básicos da sociedade - sem perceber que estão serrando alegremente o galho da árvore onde elas próprias estão sentadas.