| Foto: Mohamed Hassan/Pixabay
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“Use a sua criatividade... rsrsrs”

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“Vou dar um jeito rsrsrs”

A troca de mensagens acima não se deu entre dois adolescentes que sabem que estão fazendo algo errado e mesmo assim acham graça, entre constrangidos e cúmplices de uma travessura. Nem entre dois vendedores ambulantes que estão tentando empurrar a pedestres incautos uma mercadoria qualquer, que eles sabem ser falsificada e inútil. Nem entre dois funcionários de um pequeno comércio do interior, que tentam esconder do chefe que se esqueceram de apagar a luz antes de fechar a lojinha na véspera.

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Nos três casos acima, as consequências não seriam graves. Ainda assim, ninguém seria capaz de negar que as pequenas trapaças dos adolescentes, dos ambulantes e dos lojistas são moralmente condenáveis. Talvez eles até sentissem uma pontada de culpa pelos pequenos prejuízos causados, em um cantinho qualquer da consciência.

Mas, como revelou a primeira de uma série de reportagens dos jornalistas Glenn Greenwald e Fabio Serapião na “Folha de S.Paulo”, a troca de mensagens se deu entre integrantes da cúpula de um Poder da República.

Gente cuja assinatura pode privar da liberdade pessoas inocentes até prova em contrário, e já privou; pode impedir jornalistas, e outros profissionais, de exercerem com liberdade seu ofício, e já impediu; pode sufocar economicamente empresas que geram centenas de empregos, e já sufocou. Pode cancelar e bloquear redes sociais, passaportes e contas bancárias de desafetos, e já cancelou e bloqueou. Pode, em suma, destruir a vida de muitas pessoa e suas famílias, e já destruiu.

Destruiu, por exemplo, a vida do empresário Clériston Pereira da Cunha, o Clezão, morto na Papuda enquanto aguardava julgamento por suspeita de envolvimento nos atos de vandalismo de 8 de janeiro. Clezão deixou esposa e duas filhas. Está destruindo também a vida da cabeleireira Débora dos Santos, presa desde março de 2023 por ter rabiscado com batom a frase “Perdeu Mané” em uma estátua do STF. Débora, que tem dois filhos pequenos, pode ser condenada a 17 anos de prisão – a depender da criatividade e - e da cisma – dos juízes.

Cisma? Sim, porque em outra troca de mensagens revelada pela “Folha” se lê:

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“Ele cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia”.

E ainda:

“Ele tá bravo agora”.  

“Capriche no relatório, por favor rsrsrs”

“Se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito descarada, digamos assim.”

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E assim o Brasil descobriu – mais uma vez – que a Justiça, no Brasil, está longe de ser cega.

Em uma democracia digna do nome, espera-se do processo acusatório, primeiro, que as funções de investigar, acusar e julgar sejam separadas e atribuídas a entidades diferentes; segundo, que seja respeitada a presunção de inocência, violada quando um juiz desqualifica o acusado que ele próprio irá julgar; terceiro, o amplo direito à defesa, comprometido por inquéritos sigilosos intermináveis; quarto: a coleta de provas conduzida de forma isenta e imparcial – coleta que, por óbvio, não pode ser direcionada pelo juiz que irá julgar o caso em questão; muito menos envolver a criação de uma conta de e-mail falsa para simular uma denúncia anônima, procedimento sugerido em outra mensagem para "aliviar" o descaramento (“Nem que crie um e-mail para enviar para nós uma denúncia”).

Transformado em uma engrenagem do sistema, incapaz de qualquer reflexão moral, o indivíduo não se vê como responsável pelas consequências de seus atos

No clássico “Eichmann em Jerusalém”, Hannah Arendt examinou o fenômeno dos burocratas nazistas que, incapazes de fazer julgamentos morais, cumpriam qualquer ordem sem pestanejar. A incapacidade de questionamento não se aplicava apenas a funcionários subalternos, mas também à cúpula do regime: o próprio Adolf Eichmann, um dos responsáveis diretos pela implantação da “solução final”, não se enxergava como um monstro, mas como um burocrata zeloso que apenas obedecia ordens, em nome do Estado de Direito.

Em um sistema no qual os Poderes se misturavam e o Estado se confundia com um partido e seu projeto de poder, em uma sociedade na qual se exigia de todos a submissão incondicional, o mal perdia seu peso moral e sua dimensão demoníaca, perversa e doentia, para se tornar algo banal e rotineiro.

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Daí a expressão “banalidade do mal”. Transformado em uma engrenagem desse sistema, incapaz de qualquer reflexão moral, o indivíduo não se vê como responsável pelas consequências de seus atos, ainda que eles resultem no extermínio de milhões de seres humanos.

Guardadas as proporções, a banalidade da cisma não é muito diferente. Somente em um sistema no qual não se pode questionar ou criticar um Poder é possível a um juiz recomendar a outro, de forma debochada, que use a criatividade na condução de um processo que poderá resultar na censura de jornalistas e veículos de comunicação, escolhidos a dedo. Censura econômica, no mínimo. Perseguição explícita, em diversos casos. Tudo porque o superior “cismou” (rsrsrs).

Não se percebe ódio nem perversidade nas mensagens trocadas, nem intenção de fazer mal a alguém. Os interlocutores falam com se as consequências do trabalho que conduzem fossem semelhantes àquelas dos adolescentes, ambulantes e vendedores citados no começo deste artigo. Como se usar a criatividade e “caprichar” em um relatório que pode destruir a vida de muitas pessoas fosse algo banal e inconsequente: o importante é agradar o chefe, a prioridade é não deixar o chefe bravo.

Ainda não se sabe aonde isso vai dar, nem o que revelarão eventuais novas reportagens da “Folha”. Podemos estar diante de um ponto de inflexão, que marcará o início de uma necessária correção de rumos do país. Tomara. Mas é claro que, em se tratando do Brasil, pode também não dar em nada. A consequência, parafraseando uma das mensagens trocadas, seria uma tragédia para o país.