Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Luciano Trigo

Luciano Trigo

A esquerda não tem mais nada a ver com Marx

(Foto: Reprodução Twitter)

Ouça este conteúdo

A esquerda não tem mais nada a ver com Marx. Se, na narrativa marxista tradicional, a divisão entre opressores e oprimidos era determinada pela estrutura econômica da sociedade, cabendo ao proletariado a missão histórica de destruir o capitalismo e criar o novo mundo comunista, para a nova esquerda são fatores culturais que determinam os campos em conflito.

A luta de classes foi reinventada, assim, em novos termos: ela não opõe mais ricos e pobres, detentores dos meios de produção e força de trabalho explorada.

As “classes” hoje em confronto são, de um lado, as “minorias” empoderadas, aliadas às antigas elites, ao grande capital e à grande mídia em um ambicioso projeto de reengenharia social; de outro, o cidadão comum, que assiste, atordoado, ao bombardeio contínuo se seus valores e crenças – valores e crenças associados à família, à moral cristã, a noções claras de certo e errado, ao mérito e ao esforço individual como caminho para o crescimento e a realização pessoal.

Curiosamente, na gramática da nova esquerda é o cidadão comum que é identificado como opressor, não as elites.

Marx deve estar se revirando no túmulo. A centralidade da economia, um dos pilares de seu pensamento, foi escanteada pela nova esquerda. O herói da esquerda não é mais o proletário explorado, mas o burguês que ostenta virtude enquanto continua usufruindo de seus privilégios. Hoje são os milionários que enchem a boca para dizer que são socialistas e lutam pela justiça social. Aos trabalhadores pobres cabe apenas aplaudir tamanha virtude, enquanto continuam a perder duas horas na condução lotada para chegar no trabalho.

Façam esse exercício: coloquem, de um lado, um jovem rico que nunca trabalhou, vive para gastar o dinheiro dos pais, tem carro do ano e um Iphone de 10 mil reais, só usa roupas de grife, viaja regularmente para a Europa, nunca colocou os pés numa favela (a não ser, talvez, para comprar drogas), mas... fecha os olhos para a corrupção do bem, defende o aborto e as pautas identitárias, se declara amigo das minorias e das mulheres trans, se diz feminista e antirracista e acredita que policial é bandido, e que bandido é vítima da sociedade.

Este jovem se identifica com os oprimidos. Ele é do bem. Ele é de esquerda. Ele pode falar e fazer o que quiser. Pode, inclusive, ser rico e desprezar secretamente os pobres. Ele entendeu que o que importa hoje não é ser de fato virtuoso, é parecer virtuoso. Desnecessário dizer em quem ele vota.

Da mesma forma que os inimigos da esquerda não são mais os ricos, mas os cidadãos comuns, o alvo da esquerda não é mais o capitalismo: são os alicerces morais e culturais da sociedade

Coloquem, do outro lado, um jovem pobre da periferia, de família evangélica, que se sacrificou muito para que o filho completasse os estudos e não seguisse um caminho errado. Este jovem pega um ônibus lotado e leva horas para chegar no trabalho, mas encontra tempo para prestar serviço comunitário e ajudar quem realmente precisa – embora não tenha interesse em postar suas boas ações nas redes sociais, muito menos em se fazer de vítima.

Este jovem pratica o bem, em vez de investir na aparência da virtude. Mas ele não usa drogas, é contra o aborto e defende a igualdade de direitos e oportunidades, não a criação de privilégios compensatórios. Este jovem é rotulado como opressor e intolerante pela nova esquerda. Ele é do mal. Ele é de direita. Desnecessário, também, dizer em quem ele vota.

Nesta nova e estranha luta de classes, não são só os campos em conflito que mudaram: também o alvo a ser destruído agora é outro: não é mais o sistema de exploração econômica, obviamente, porque aí posar de virtuoso e justiceiro social vai perder a graça.

Da mesma forma que os inimigos da esquerda não são mais os ricos, mas os cidadãos comuns, o alvo da esquerda não é mais o capitalismo: são os alicerces morais e culturais da sociedade, os laços tradicionais entre as pessoas, os valores compartilhados sem os quais nenhuma nação pode prosperar.

A frase “Tudo que é sólido desmancha no ar” (atribuída a Marx, mas que na verdade é da peça “A tempestade”, de Shakespeare, que Marx apenas parafraseou) ganhou um novo sentido: a esquerda não está mais preocupada em demolir os fundamentos capitalistas da economia, com os quais fez as pazes, mas em profanar tudo que era sagrado, em destruir os fundamentos morais e espirituais do indivíduo.

Esse deslocamento da economia para a cultura como eixo e alicerce do projeto da esquerda não é novo, começou lá atrás: tem raízes em Gramsci e, mais recentemente, na contracultura dos anos 60. Mas parece claro que esse deslocamento vem se acelerando muito nos últimos anos. Voltarei ao tema.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.