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Luciano Trigo

Luciano Trigo

A felicidade é um direito?

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A noção, outrora elementar, de que a cada direito corresponde um dever é coisa do passado. Deveres estão fora de moda. Cada indivíduo e cada um dos guetos em que a sociedade foi dividida só se preocupam em cobrar dos outros, todos os dias, a garantia dos seus direitos.

Criou-se assim uma situação insustentável, que explica em parte a escalada de insanidade em que vivemos hoje. Eu não tenho deveres, só tenho direitos; mas, para ser atendido, cada direito meu impõe a outros (jamais a mim) deveres. Como os outros também consideram que só têm direitos, a consequência é que ninguém respeita o direito de ninguém, e a gritaria só aumenta.

Desfazem-se assim todos os laços de respeito e valores compartilhados que, em um passado não tão distante, eram o cimento das relações e sociais. Na sociedade sem deveres, é cada um por si e todos contra todos. Fica parecendo que o objetivo não é lutar por direitos legítimos, mas simplesmente fazer da reclamação, da vitimização e do protesto permanente uma razão de viver.

Venderam para as novas gerações essa ideia de que ser feliz é um direito. Não é. O direito inalienável de todo indivíduo é o de ter condições e oportunidades para buscar a sua felicidade; mas, por óbvio, nem todos a encontrarão, até porque porque os indivíduos são diferentes até em suas maneiras de serem felizes.

Ninguém é feliz por decreto, e a infelicidade faz parte da condição humana, em qualquer lugar e em qualquer tempo. Basta pensar nos altos índices de suicídio de alguns países ricos, com índices elevados de qualidade de vida e distribuição de renda. Mas, no Brasil, disseminou-se a convicção de que, se alguém não é feliz, a culpa é dos outros, então ele tem o direito (mais um!) de cobrar dos outros a fatura dos seus problemas e fracassos.

Curiosamente, a palavra “felicidade” não aparece uma vez sequer no texto da Constituição brasileira de 1988, talvez porque os constituintes entendessem que a felicidade diz respeito ao mundo interior, subjetivo, de cada um, não é algo que se possa garantir a todos por lei.

A palavra aparece, sim, logo no segundo parágrafo da Declaração de Independência dos Estados Unidos, mas é interessante observar que, já em 1776, Thomas Jefferson e os outros redatores da Carta que formalizou a libertação das 13 Colônias do jugo britânico tinham consciência da diferença sutil, mas fundamental, entre o direito à felicidade e o direito à busca da felicidade:

“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”

Note-se que Jefferson não falou em “busca da liberdade”, porque a liberdade é, em sim, um direito inalienável, diferentemente da felicidade.

Mas, em pleno século 21, no país do “nenhum direito a menos”, todo mundo se acha no direito de pensar mais ou menos assim: “Se eu tenho direito à felicidade, por que diabos vou me esforçar para conquistar qualquer coisa? Basta cobrar da sociedade e do Estado esse meu direito”.

Ou assim: “Se eu não sou feliz, a culpa é do outro – ou do Estado. Eu não devo nada a ninguém, mas, se o outro tem algo que eu não tenho, ele se torna meu devedor.” Paralelamente à sociedade sem deveres, cria-se assim uma sociedade de credores, cheios de dívidas imaginárias, alimentados por rancores e ressentimentos sem fim.

Basta olhar para os lados, é o que mais se vê hoje em dia: pessoas ressentidas, que gastam sua energia cobrando dos outros – ou, pior ainda, do governo – a conta de sua própria infelicidade

Mas a dura realidade é que aqueles que se acham credores do mundo e que a sua própria felicidade é uma obrigação alheia estão condenados a uma vida infeliz. Basta olhar para os lados, é o que mais se vê hoje em dia: pessoas ressentidas, que gastam sua energia cobrando dos outros – ou, pior ainda, do governo – a conta de sua própria infelicidade.

Muitas dessas pessoas foram simplesmente enganadas e se tornaram inocentes úteis a serviço de uma agenda que mal compreendem; outras agem de má-fé. O resultado é o mesmo: todas compartilham a convicção de que a felicidade é um direito e, portanto, não precisa ser conquistada com esforço, sacrifício e talento: se eu não sou feliz, a culpa é do outro, e ele vai pagar por isso.

Em algum momento da vida, todo mundo se depara com questões como:

- Quanto estou disposto a me esforçar ou me sacrificar para atingir minhas metas?

- O que representam a felicidade e a realização pessoal para mim? Do que eu preciso para ser feliz?

- Quanto do meu tempo e da minha energia estou disposto a investir para ser feliz?

- De que incentivos preciso e que recompensas espero na minha vida profissional?

Etc.

Ainda que não reflita racionalmente sobre essas questões, na prática cada um de nós fez e faz suas escolhas, diariamente, com base em um trade-off simbólico de custos e recompensas. As minhas escolhas serão diferentes das suas, e é bom que seja assim: negar isso é negar a própria natureza humana. Ruim é não ter escolhas a fazer.

Não existem respostas certas ou erradas para essas perguntas, mas seguramente as respostas determinarão rumos diferentes na trajetória de cada um: haverá quem se sinta realizado vivendo modestamente, por dar mais valor a outras coisas na vida, da mesma forma que haverá pessoas movidas pela ambição de crescer, e não há nenhum problema nisso. O problema começa quando quem opta por uma vida de menos esforço e trabalho aponta o dedo para quem se sacrifica – e exige uma equiparação de resultados.

Isso porque a disseminação dessa crença falaciosa na felicidade como direito tem relação direta com outra convicção ideologicamente motivada: a de que todos têm direito à igualdade absoluta – não à igualdade perante à lei, como determina a Constituição, mas à igualdade em todos os aspectos da existência (o que, aliás, exige que a lei trate grupos diferentes de formas diferentes).

Também neste caso se atribui ao Estado a tarefa impossível de garantir essa igualdade absoluta – o que, no mundo real, é pouco menos que uma alucinação coletiva. Mas é essa alucinação que está na base do mimimi generalizado, do ressentimento como razão de viver e do arrastão politicamente correto que tomaram conta das redes sociais e do debate político no Brasil nos últimos anos.

O fato é que nenhuma sociedade sobrevive tentando esmagar as diferenças entre os indivíduos, porque os dons e potenciais, as escolhas e ambições, as disposições e predisposições de cada um são diferentes, e é justamente por serem diferentes que cada indivíduo é único e especial. Voltarei ao tema.

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