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Luciano Trigo

Luciano Trigo

“A Independência não foi só um grito, foi uma série de guerras”

(Foto: Reprodução)

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No livro “As guerras da Independência do Brasil – O processo de criação de um Estado nacional nos trópicos”, o premiado escritor e jornalista Leonencio Nossa faz uma investigação original sobre mais de 100 conflitos armados que ocorreram antes e depois do Sete de Setembro, entre 1808 e o começo da década de 1850, mostrando que a nossa Independência foi um processo muito mais complexo e sangrento do que se costuma ensinar nas salas de aula. Mais do que isso, o autor examina a participação pouco conhecida de indígenas, negros, ciganos, árabes, judeus e mestiços na luta contra a dominação portuguesa e na formação da nossa identidade nacional, além de contextualizar o papel de personagens históricos como D.Pedro I e José Bonifácio. Nesta entrevista, Leonencio fala sobre alguns aspectos de seu livro, recém-lançado pela editora Topbooks.

- Que comparação você faria entre o mural de Antônio Parreiras que ilustra a capa do livro e o célebre quadro de Pedro Américo sobre a Independência?

LEONENCIO NOSSA: Por mais que se façam leituras da ausência do povo nas pinturas da Independência, especialmente na obra do Pedro Américo, a participação popular está representada, ainda que na margem. No quadro de Parreiras, um soldado negro aparece com destaque, caído. A diferença maior entre as duas pinturas é que Parreiras expõe ao menos dois personagens feridos. A campanha da Independência não foi só um grito, foi uma série de guerras, com muitas mortes.

- Entre os mais de 100 conflitos e guerras analisados no livro, quais foram os mais decisivos para a formação da identidade brasileira?

LEONENCIO: Talvez as batalhas ocorridas no Recôncavo Baiano, que, mesmo chefiadas por senhores de engenho e oficiais enviados por Dom Pedro, tiveram grande diversidade de participantes. As guerras no sertão do Piauí, nas matas de cocais do Maranhão e no Baixo Amazonas também foram importantes, por mostrar que a campanha não era apenas por autonomia política, mas pela abolição, pela liberdade de pensamento, pelo emprego, pela renda. As diferenças sociais e culturais ficaram evidenciadas a partir daí, na formação do Estado e na estrutura de país.

- Quais foram os conflitos mais violentos e sangrentos? Quantas pessoas morreram nesses conflitos?

LEONENCIO: Os números são sempre um problema nos registros de época. Mas se sabe que na Bahia alguns milhares de homens, mulheres e adolescentes entraram sem condições mínimas nos lamaçais para enfrentar as tropas portuguesas. A febre foi um inimigo perverso. Em Belém, 256 revoltosos foram trancados em um porão de navio, em 1823, pela força enviada por Dom Pedro. Apenas um sobreviveu para contar a história. Na Batalha do Jenipapo, no Piauí, também ocorrida naquele ano, duas centenas de brasileiros e cerca de 20 portugueses morreram. A prática do fuzilamento de prisioneiros marcou os conflitos no interior do Ceará e do Maranhão.

- Como a independência política de Portugal em 1822 se relaciona com a persistência da dependência econômica nas décadas e séculos seguintes?

LEONENCIO: Toda guerra tem um componente econômico muito forte. No caso da Independência do Brasil não foi diferente. Na campanha estavam portugueses que não conseguiram fazer fortuna na antiga colônia nem acesso à estrutura estatal da Coroa. Com mercenários europeus e adesões de elites econômicas do Norte, Dom Pedro vai conseguir a façanha de expulsar o exército português da Bahia e do Piauí. É algo que precisa ser colocado. Afinal, esse exército era composto por oficiais treinados pelos ingleses nas batalhas contra as tropas de Napoleão na Península Ibérica anos antes. Agora, as chamadas guerras da independência vão continuar após 1826. Os militares portugueses tinham voltado para Lisboa, mas os conflitos continuaram, porque os poucos empregos públicos e mesmo privados nas cidades litorâneas permaneceram nas mãos dos portugueses. A comunidade lusitana também predominava no comércio, nas movimentações dos portos e em toda a cadeia de produção agrícola. O brasileiro, falo do homem e da mulher sem recursos, livre ou escravizado, continuou em estado de guerra.

- De que forma os indígenas participaram da formação dessa identidade, no período abordado no livro?

LEONENCIO: Os indígenas tiveram participação mais efetiva na Bahia, em Pernambuco, no Piauí, no Maranhão e no Pará. Tinham a oferecer a massa de combatentes. Buscavam protagonismo, igualdade e, principalmente, uma barreira política às invasões de suas terras. O modelo vitorioso de Independência, com a centralização e o poder quase absoluto nas mãos de Dom Pedro e seus representantes nas províncias, logo entrou em choque com as demandas de comunidades tradicionais. Tanto que, nas margens dos rios Amazonas e Tapajós, nas cercanias de Belém e na Ilha do Marajó, aldeias mergulharam na guerra justamente após a saída completa das tropas portuguesas. No Grão-Pará, o movimento da Cabanagem, ocorrido na década de 1830, é uma consequência clara do processo de independência. Os cabanos não se viam representados nos governos da província apoiados pelo Império, que na verdade eram montados com remanescentes dos quadros da Coroa Portuguesa.

- Você destaca a participação dos negros e outras minorias nas guerras de independência. Qual foi a relação entre a escravidão e o processo de independência?

LEONENCIO: Os rascunhos do modelo de país independente de José Bonifácio e Dom Pedro previam um processo de abolição. O novo país era pensado com bases no liberalismo inglês. Mas a força dos senhores de engenho do Nordeste, dos pecuaristas de Minas e dos proprietários de terra do Vale do Paraíba, entre Rio e São Paulo, que começaram a fazer suas primeiras colheitas de café, predominaram ainda na Constituinte de 1823. É preciso observar ainda a influência da elite de traficantes de escravos que dava as cartas por aqui. O país viveu por décadas um liberalismo adaptado à barbárie da escravidão. A participação dos negros nas guerras do Brasil, de forma voluntária ou por meio de recrutamento, sempre ocorreu com a promessa da liberdade. Os escravizados entraram nas batalhas tendo por demanda a abolição. Mas, ao final dos conflitos, os acordos raramente foram cumpridos pelos senhores das guerras. Não é possível pensar na construção de um país se você não é dono de seu próprio corpo.

- Você destaca a luta pela terra como um fator estruturante da Independência e da formação do estado brasileiro. Fale sobre isso.

LEONENCIO: A terra é sempre um estopim de um conflito mesmo de dimensão continental. Pode observar a origem das guerras brasileiras, seja na época da Independência, seja nos nossos dias. No campo ou na cidade é pelo chão que se briga. José Bonifácio chegou a escrever sobre um projeto de país associado à entrega de terras para todos e, ao mesmo tempo, um Estado com poderes de atuação absoluta para legislar e monitorar todo o território. Mas logo o país vai ter propriedades privadas com milícias próprias, que não permitia a entrada do Estado. Mesmo com paradoxos, idiossincrasias e preconceitos, Bonifácio associava o acesso à terra ao processo abolicionista. Para ele, a formação do país passava pela “abolição total” da “infame escravidão” e pelo controle do Estado da ordem e da vida social. Não foi o que ocorreu. A grande propriedade que se constituía no Brasil tornou-se um obstáculo ao poder público. Os grandes proprietários passaram a ter hegemonia no Legislativo para garantir o controle sobre quem nela estava, isto é, escravizados ou mesmo trabalhadores livres, que recebiam alguma remuneração.

- Qual foi a real participação e importância de Pedro I na Independência?

LEONENCIO: A imagem dele vai ser usada pelos separatistas das províncias do chamado Norte. É quase um amálgama em um Brasil que já se mostrava múltiplo e diverso em todos os sentidos. Tempos depois da Independência, ele se tornará símbolo de grupos sertanejos que combatiam forças centrais. Ao mesmo tempo, o modelo que ele implantou no seu reinado sufocou demandas de liberdade. Talvez esse seja um personagem que ainda depende de estudos. A construção de Dom Pedro nos livros de história costuma resultar em exageros, tanto da parte de quem busca nele o grande herói ou de quem tenta retratar um príncipe marionete de grupos políticos e econômicos.

- O historiador José Murilo de Carvalho declarou há poucas semanas: “É uma pergunta que sempre me faço e não consigo responder. O que foi melhor? Permanecer esse monstro unido, ou teria sido melhor se separar em vários países?” Como você responderia? Quais foram as vantagens e desvantagens da consolidação da unidade do território continental do Brasil?

LEONENCIO: José Murilo de Carvalho impediu que a discussão da independência neste bicentenário caísse no ridículo. É difícil mesmo uma resposta. Qualquer análise sobre a dimensão territorial do Brasil e suas consequências leva a uma comparação, claro, com os países vizinhos. A América Portuguesa praticamente ficou intacta, e vivemos hoje este país de muitas tragédias. Mas quem vive atualmente no espaço do antigo Vice-Reino do Prata, que se fragmentou em muitos países – os que falam espanhol na América do Sul, não está em situação muito melhor. A união das províncias das antigas colônias do Brasil e do Maranhão – Grão-Pará e Maranhão – se deve basicamente à língua portuguesa. A principal vantagem de viver em um país continental é a possibilidade de acesso mais fácil a culturas diversas, que nos tornam mais humanos e preparados. A desvantagem é que a ideia de nação costuma não respeitar diferenças.

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