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“Se a Primeira Emenda proteger até um canalha como eu, esta é a garantia de que ela protegerá todos vocês.”
O autor da frase acima é Larry Flynt, fundador da revista masculina “Hustler”, famosa na época por seus conteúdos provocativos e polêmicos. Em 1983, a revista publicou uma paródia envolvendo um líder evangélico proeminente na época, o reverendo Jerry Falwell. A paródia era de mau gosto, absurda, vulgar e ofensiva: uma entrevista imaginária na qual o reverendo falava sobre sua iniciação sexual, por assim dizer, atípica.
Falwell processou Flynt por difamação, sofrimento emocional intencional e invasão de privacidade. O tribunal de primeira instância rejeitou a alegação de difamação, uma vez que se tratava evidentemente de uma paródia, mas condenou Flynt a pagar uma indenização de 200 mil dólares pelo sofrimento emocional que causou. Flynt recorreu, e em 1988 o caso foi parar na Suprema Corte dos Estados Unidos.
Como se sabe, é a Primeira Emenda da Constituição americana que protege direitos essenciais do cidadão, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e a liberdade de religião. Ela proíbe taxativamente o governo e o Congresso de aprovar leis que ameacem esses direitos fundamentais.
A frase citada acima foi dita durante o julgamento de Larry Flynt, que se tornou um marco na história da liberdade de expressão nos Estados Unidos. Naquela ocasião, a Suprema Corte estabeleceu uma nova jurisprudência sobre a extensão da proteção à liberdade de expressão garantida pela Primeira Emenda.
No final do julgamento – retratado no filme “O povo contra Larry Flynt”, de Milos Forman, de 1996 – a Suprema Corte decidiu por unanimidade (8 x 0) dar razão a Flynt e à revista “Hustler”. A Primeira Emenda, o tribunal argumentou, deve proteger a sátira e a paródia, mesmo que estas sejam ofensivas.
Segundo o juiz William Rehnquist, um dos membros da Suprema Corte, proteger até mesmo os discursos que atacam e ridicularizam figuras públicas seria essencial para manter a vitalidade da democracia americana e evitar que figuras poderosas silenciassem críticas, no futuro.
Por que o julgamento de Larry Flynt foi tão importante?
Primeiro, pela afirmação da proteção do discurso ofensivo: a Suprema Corte consolidou a ideia de que a liberdade de expressão não existe apenas para discursos agradáveis ou convencionais, mas também – e principalmente – para aqueles que chocam, ofendem ou incomodam.
Segundo, por limitar a margem para processos por difamação: a Suprema Corte tornou mais difícil para figuras públicas processar jornalistas, humoristas e pessoas comuns, garantindo a todos o direito de se expressar livremente, sem medo de perseguição ou retaliação legal.
Terceiro, por fortalecer o humor como uma ferramenta legítima de crítica, que faz parte do processo democrático: a Suprema Corte entendeu que o direito à sátira, mesmo quando ela é ofensiva, é essencial para o equilíbrio entre o poder e a opinião pública.
A liberdade de expressão não existe apenas para discursos agradáveis ou convencionais, mas também – e principalmente – para aqueles que chocam, ofendem ou incomodam
A mensagem da Suprema Corte foi clara. A liberdade de expressão só existirá quando até mesmo o discurso mais desagradável for protegido: só assim se garantirá que liberdades fundamentais não serão corroídas nem limitadas por padrões subjetivos de gosto, ideologia ou moralidade.
Por que me lembrei de Larry Flint?
O julgamento de Larry Flynt pela Suprema Corte pode contribuir para o debate atual sobre a censura das redes sociais no Brasil, objeto de um julgamento em curso no STF. Os dois episódios, ainda que afastados no tempo e no espaço, compartilham uma questão central: a busca do equilíbrio entre a liberdade de expressão e os seus limites.
O julgamento de Larry Flynt e o debate no STF sobre a regulação das redes sociais apontam para a mesma tensão entre a liberdade de expressão e a necessidade de proteger a sociedade contra abusos. A Suprema Corte americana entendeu que a liberdade individual deve prevalecer, caso contrário a censura passa a ser justificada, e a democracia fica comprometida.
Já no debate atual envolvendo o papel das plataformas como mediadoras do discurso público, o STF parece caminhar no sentido oposto. Ora, é certo que questões como desinformação, discursos de ódio e manipulação algorítmica levantam dúvidas legítimas sobre as redes sociais. Mas resolver esse problema impondo às plataformas a autocensura seria o pior das soluções.
Basta citar um motivo: o risco de remoção preventiva de conteúdos, para evitar processos futuros, fatalmente empobreceria o debate público, calando vozes críticas e impondo um pensamento único.
Aliás, a ficha já está caindo até para uma parte da esquerda, que tanto apoiou a perseguição de seus desafetos. Um apoiador convicto do governo chamou a atenção no X para o risco de a censura se voltar contra eles: “Grave perigo transferir para as plataformas o direito e a obrigação de remover ‘conteúdos impróprios’, sem decisão judicial. Isso não é combater ‘discurso de ódio’ ou ‘fake news’, mas privatizar para o grande capital um poder mortal sobre a liberdade de expressão e imprensa.
A censura será sempre incompatível com os ideais da democracia. Quando se calam as vozes dissidentes com o pretexto enviesado de que liberdade de expressão não é liberdade de ofender ou agredir, a democracia já se tornou relativa.
Seguem abaixo outras declarações de Larry Flynt que deveriam merecer a atenção de todos os envolvidos nesse debate, especialmente daqueles que têm o poder de tomar decisões que terão implicações graves para a sociedade.
Frases de Larry Flynt:
“A liberdade de expressão não é feita para proteger o discurso que você gosta; ela é feita para proteger a fala da qual você não gosta”;
“Ninguém entende que a Primeira Emenda só é importante se você quiser ofender alguém. Se você não vai ofender alguém, não precisa da proteção da Primeira Emenda”;
“A regra da maioria só funciona se você também considerar os direitos individuais. Porque você não pode ter cinco lobos e uma ovelha votando sobre o que comer no jantar”;
“Você tem que ser capaz de tolerar aquilo de que não necessariamente gosta, para poder ser livre”;
“Uma democracia não pode existir sem liberdade de expressão. É isso que os americanos tendem a esquecer, porque eles nascem em uma cultura onde todas as liberdades parecem garantidas”;
“As pessoas não estão interessadas em que os outros controlem o que podem fazer, ler ou ver na privacidade de suas próprias casas”;
“Aqueles que abrem mão das suas liberdades civis em prol da segurança não merecem nenhuma das duas coisas”.
Conteúdo editado por: Aline Menezes