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Luciano Trigo

Luciano Trigo

‘A loucura das massas’ analisa escalada do politicamente correto

(Foto: Divulgação)

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Em uma época de guerra cultural na qual até personagens de desenhos animados são cancelados por hordas enfurecidas de militantes da “censura do bem” – como aconteceu nesta semana com Pele Le Gambá e Ligeirinho, banidos por, respectivamente, “incentivar a cultura do estupro” e “reproduzir estereótipos tóxicos sobre os mexicanos” (acreditem, é sério) – a  leitura de “A loucura das massas – Gênero, raça e identidade”, do jornalista britânico Douglas Murray, recém-lançado pela editora Record, é mandatória para qualquer leitor que queira conservar minimamente sua sanidade mental em tempos sombrios.

Nadando na contracorrente do politicamente correto, Murray faz uma crítica devastadora ao conjunto de crenças que tem levado muitas pessoas a considerar aceitáveis a perseguição, a censura e o cancelamento de toda e qualquer opinião dissidente – mesmo que esta opinião seja a da maioria da população. E esse processo se dá por uma feitiçaria de linguagem muito simples: “Se eu, que censuro, persigo e cancelo, sou pela justiça social, qualquer um que pense de forma diferente de mim é um fascista que odeia os pobres e as minorias e merece ser esfolado na praça pública das redes sociais”. Ou seja, fazer parte de qualquer minoria me dá o direito de ser o promotor, o jurado o juiz e o executor de qualquer um que eu julgar culpado.

O artifício, apesar de tosco, pode ser bastante sedutor para adolescentes e jovens adultos, ávidos pelo sentimento de pertencimento e aceitação social. Como é esta a narrativa que prevalece nas salas de aulas de escolas e universidades com partido, é fácil entender por que tantos jovens temerosos da exclusão se tornam presas fáceis dessa armadilha: ninguém quer sequer parecer estar do lado do patriarcado branco opressor e do presidente genocida. Escolas e universidades se tornaram, assim, igrejas do “monopensamento” progressista e de esquerda - e fazem da destruição do patriarcado branco e cis sua razão de viver.

Com um estilo sempre provocador, Murray estrutura “A loucura das massas” em torno dos quatro grandes temas - Gays, Mulheres, Raça e Trans – que se tornaram os eixos principais das lutas identitárias contemporâneas. Ele faz um inventário assustador de episódios recentes que demonstram o grau de insanidade a que podem chegar essas lutas: obras de arte canônicas sendo censuradas, carreiras sendo destruídas por qualquer bobagem e uma atmosfera de hostilidade crescente da militância identitária contra todo aquele que não fizer jus a uma carteirinha de vítima, automaticamente classificado de racista, sexista, homofóbico e transfóbico.

Segundo Murray (que, aliás, é gay), vivemos em uma época na qual se incentivam mulheres a odiar homens, gays a odiar heteros e negros a odiar brancos. Cada capítulo do livro reforça a impressão de que fascistas identitários chamam suas taras de "direitos" (e os direitos dos outros de "abusos"). Dirigindo-se a um hipotético militante trans, o autor dispara: “O seu desejo de se vestir de mulher não é motivo para forçar todo mundo a usar pronomes neutros, nem para alterar todos os banheiros públicos”.

“Assumir que sexo, sexualidade e cor da pele nada significam seria ridículo. Mas assumir que significam tudo será fatal”

É algo que parece óbvio, mas que hoje soa ousado e até perigoso de se escrever: vale lembrar que neste exato momento pessoas estão sendo banidas das redes sociais por escreverem frases como “Homens não são mulheres” – interpretadas como “discurso de ódio” pelos moderadores do Twitter e do Facebook. Mas os mesmos moderadores acham bonitinhas hashtags como “#MatemTodosOsHomens” ou “#CancelemPessoasBrancas”...

Parece evidente que nada de bom pode vir daí. Em relação ao identitarismo racial, por exemplo, Murray cita o caso da acadêmica Rachel Dolezal, cancelada por ter iniciado um debate sobre o “trans-racialismo”: ora, argumentou a professora, se eu posso escolher meu gênero, por que não posso escolher minha raça? Pois é: se um indivíduo se sente chinês ou indígena, por que deveríamos impedi-lo de se declarar como tal, uma vez que devemos achar aceitável que um indivíduo que nasceu com um pênis se declare mulher? Previsivelmente, por exercer sua liberdade de pensamento Rachel foi perseguida por ativistas do racialismo, que a classificaram como uma “professora cis, branca, racista e transfóbica” – o que foi suficiente para encerrar o debate: nas controvérsias identitárias, ofensas tomaram o lugar dos argumentos.

O autor chama a atenção para o fato de que nunca antes na História da humanidade as minorias tiveram tantos direitos e liberdades (nas democracias capitalistas, claro, porque nas ditaduras comunistas ou muçulmanas a conversa é outra). Graças a muitas lutas e conquistas legítimas, a sociedade parecia caminhar para uma situação em que todos se tratariam com respeito, como iguais. Mas, de repente, por iniciativa das próprias minorias (ou de minorias dentro dessas minorias), passamos a caminhar no sentido oposto, isto é, rumo a uma sociedade em que a todo momento as diferenças de raça e gênero são enfatizadas, como forma de garantir privilégios e/ou de justificar ressentimentos.

Em lugar de uma sociedade na qual a raça ou a orientação sexual não fazem diferença – antigo ideal das minorias, que lutavam para que cada indivíduo fosse avaliado por seus méritos, e não por características inatas – promovem-se hoje verdadeiras caçadas humanas contra qualquer um designado como adversário – geralmente pessoas conservadoras ou de direita. “Pedidos de justiça foram transformados em pedidos de vingança histórica”, escreve Murray. “Os esforços para que a raça desaparecesse como questão foram substituídos pelos ‘antirracistas’ que fizeram da raça a questão central para se entender toda a sociedade”.

Esse processo tem levado empresas e corporações a se sentirem obrigadas a enfatizar seu compromisso com a diversidade, mesmo que para isso seja necessário perseguir, demitir e censurar. Como se todos os problemas do mundo se reduzissem a questões de raça ou gênero – e como se todos os homens brancos e heterossexuais fossem culpados por todo o mal que existe na Terra. “A vida se parecerá cada vez mais com um catálogo de rancores históricos”, afirma Murray. “Assumir que sexo, sexualidade e cor da pele nada significam seria ridículo. Mas assumir que significam tudo será fatal”. E conclui: “A vítima nem sempre está certa - e pode nem ser uma vítima”.

Editor da revista “The Spectator” e também autor de “Neoconservatism: why we need it” e do também inédito no Brasil “The strange death of Europe”, um corajoso ensaio sobre as consequências do multiculturalismo e do impacto da migração descontrolada sobre os valores e as sociedades da Europa – Murray encerra "A loucura das massas" com uma defesa apaixonada da liberdade de expressão e com um apelo ao bom senso como forma de resistência à histeria da militância identitária. Não me parece que a militância progressista está disposta a ouvir esse apelo.

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