O Chile vive hoje uma situação paradoxal no combate à Covid-19. É, disparado, o país que mais vacina na América Latina: cerca de 35% dos chilenos já receberam pelo menos a primeira dose. Está entre os cinco que mais vacinaram no planeta (em doses administradas por 100 habitantes), ao lado de Israel, Emirados Árabes, Reino Unido e Estados Unidos.
A título de comparação, no Brasil apenas 6% da população receberam a primeira dose da vacina. É muito pouco, mas cabe registrar que estamos na frente de países como a China, a Índia, a Rússia e o México, acima da média mundial e muito à frente do Japão, que é um caso à parte: vacinou menos de 1% da população, mas o número de casos está em queda livre.
(Israel também é um caso caso que merece uma análise específica, que leve em consideração que tem o tamanho do estado de Sergipe e que a disciplina lá faz parte do cotidiano: é um país preparado para entrar em guerra daqui a 15 minutos, e onde todos fazem serviço militar. Desnecessário dizer, o Brasil é um país de cultura muito diferente).
Mas, como foi noticiado nesta semana, o Chile se viu obrigado a adotar novas medidas severas de isolamento social, depois que os casos e mortes voltaram a disparar, lotando hospitais: o número de pacientes internados em UTIs no país é o maior desde o início da pandemia, a ocupação de leitos está próxima dos 100% e a taxa de contágio é a maior já registrada no país.
Em todas as regiões do Chile a tendência é de aumento do número de casos e mortes. Na quinta-feira passada, no mesmo dia em que o país alcançou a marca de 6 milhões de imunizados com a primeira dose, a situação se agravou ainda mais, levando o governo do conservador Sebastián Piñera a impor o confinamento radical em casa a mais de 80% da população. É o paradoxo chileno.
O gráfico abaixo, reproduzido do site worldometers.info/coronavirus, mostra que, três meses após o início da vacinação no Chile, a situação está tão grave quanto no pior momento da pandemia, em junho do ano passado. A vacinação avança, e a epidemia piora.
Seguramente, uma leitura apressada do fenômeno fará muitas pessoas que teimam na politização da pandemia concluírem, satisfeitas, que vacinas e medidas de isolamento não servem para nada. Não é assim. Cada um acredita no que quiser, é claro, mas, objetivamente, a notícia da disparada de casos no Chile é péssima para todo mundo. Significa que mais pessoas vão adoecer e morrer, por um período de tempo maior do que se esperava.
A resistência a medidas de isolamento compulsório é natural depois de mais de um ano de pandemia: está todo mundo exausto, ninguém aguenta mais. Mas qual é a alternativa?
O Ministério da Saúde do Chile fez uma análise objetiva da situação: a velocidade na compra e na aplicação das vacinas levou os chilenos a relaxarem, acreditando que o problema estava resolvido. A circulação das pessoas aumentou e, em seguida, o número de casos e mortes – como, aliás, aconteceu no Brasil, após as festas de final de ano.
Trata-se aqui do registro de um fato, não de uma opinião politicamente enviesada. A conclusão, desagradável, é que a vacinação, por si só não, é suficiente: é uma estratégia de contenção da pandemia que precisa ser agregada a outras. E tudo isso não para resolver de vez a pandemia, mas para torná-la mais suportável e menos letal.
A resistência psicológica a medidas de isolamento compulsório é natural e pode ser atribuída em parte ao compreensível cansaço das pessoas, depois de um ano de pandemia. Está todo mundo exausto, ninguém aguenta mais. Também é verdade que restrições à livre circulação das pessoas ferem direitos fundamentais. É certo, por fim, que nessa equação a saúde mental da população e as consequências da paralisação econômica precisam ser consideradas.
Mas quais são as alternativas melhores que retardar a disseminação do vírus (e o colapso do sistema de saúde, como já foi explicado à exaustão)? Viver e deixar morrer? Narrativas excessivamente otimistas – seja ao minimizar a gravidade da pandemia, seja ao exagerar a eficácia da vacinação – têm consequências ruins: geram uma sensação falsa de proteção e segurança que faz as pessoas tomarem menos cuidado do que precisam. Colocam assim em risco não apenas as próprias vidas, mas também a de seus parentes mais vulneráveis.
O vírus é indiferente à nossa exaustão. Ele vai se aproveitar de qualquer aglomeração para se espalhar – seja entre trabalhadores obrigados a usar transporte público lotado, seja entre jovens irresponsáveis que frequentam festas clandestinas que reúnem centenas de pessoas.
Estamos vivendo uma situação sombria, na qual todas as alternativas são horrorosas. Individual e coletivamente, somos obrigados a um trade-off diário, a negociar permanentemente com números assustadores e com a percepção crescente de que a Covid não faz apenas vítimas anônimas e distantes, mas também mata conhecidos, amigos e parentes.
A vacinação é a esperança mais palpável para quem sonha com dias melhores, mas não é a bala de prata que vai matar o monstro da Covid. É preciso moderação: parte da mídia vende (e muita gente compra) a narrativa de que a vacinação resolveu o problema. Não é assim. O caso chileno está demonstrando que a vacina, apesar de urgente e necessária, não faz mágica. Seu impacto na superação da pandemia será lento e gradual.
O surgimento de novas cepas mais letais e contagiosas do vírus, como parece ser o caso da brasileira P1, torna a situação ainda mais complicada. A imunidade de rebanho ainda é um cenário distante. Somem-se a isso notícias recentes sobre o aumento de casos e mortes em faixas etárias mais jovens e dos episódios de reinfecção provocadas por mutações: está difícil ficar otimista. O vírus ainda vai continuar circulando e matando por algum tempo, impossível de estimar. A estrada é longa.
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