O anúncio do pacote fiscal de Fernando Haddad pareceu ilusionismo: uma tentativa de distrair a plateia.| Foto: Koichi Hagiwara/Pixabay
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Todo mundo sabe que o truque dos mágicos é desviar a atenção do espectador com uma mão enquanto faz algo com a outra. O desvio de atenção é uma técnica básica no repertório dos ilusionistas, que aprenderam a explorar algumas características da psicologia humana, como a atenção seletiva e os limites da percepção.

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Como o truque funciona?

O mágico faz um movimento ostensivo, chamando a atenção para uma das mãos (a “mão chamativa”), enquanto a outra (a “mão discreta”) age de maneira sutil, escondendo ou manipulando alguma coisa. Incapaz de processar as duas informações ao mesmo tempo, a mente humana tende a focar no estímulo mais chamativo.

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É tudo muito rápido, então o truque exige extrema habilidade. O mágico também pode recorrer a uma varinha, ou a uma pergunta, para criar um momento de distração: “Estão vendo esse lenço?” Na fração de segundo em que a plateia olha para o lenço, ele esconde uma moeda na outra mão, ou ativa algum mecanismo secreto.

O êxito da execução também depende do carisma. Quando o mágico é bom, o público tende a se deixar levar: se ele conduz o olhar para uma mão, é porque nada importante acontece na outra. Ao criar uma narrativa convincente, o mágico controla, assim, o olhar do espectador, que acredita ter visto tudo – quando, na verdade, perdeu o principal.

O aguardado anúncio do pacote de corte de gastos (a mão discreta), acompanhado da promessa de isenção no Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5.000,00 (a mão chamativa), seguiu essa dinâmica ilusionista, na tentativa de gerenciar a percepção da plateia e minimizar as críticas ao mágico, digo, ao ministro Fernando Haddad.

Em um momento em que se esperavam cortes robustos, dar com um a mão enquanto se tira com a outra se aproxima mais de uma mudança na composição das despesas do que, efetivamente, em economia. Mas, a rigor, a isenção nem sequer faz parte do pacote de cortes. E já avisaram, também, que ela só será apreciada pelo Congresso em 2025 (leia-se depois do Carnaval, lá para o final de março, no mínimo), enquanto os cortes devem ser votados até o final deste ano.

Manipular a percepção da sociedade não é uma estratégia incomum. Em momentos de crise, quase todos os governos tentam mitigar o impacto de medidas impopulares com anúncios atraentes. No caso presente, o sucesso do truque dependeria de um delicado equilíbrio entre a necessidade de responsabilidade fiscal e a manutenção da imagem de um governo comprometido com o bem-estar social.

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Esta mágica vai dar certo?

A julgar pelas primeiras reações do mercado e até da complacente grande mídia, parece que não. O pacote não convenceu nem a direita, nem a esquerda. Com exceção daqueles que enxergam alguma vantagem pessoal nas medidas anunciadas e daqueles que apoiam incondicionalmente tudo que o governo faz, o descontentamento é generalizado.

Quem se preocupa com a deterioração fiscal do país avalia que os cortes anunciados são insuficientes; quem se preocupa com a situação dos mais pobres rapidamente percebeu que o pacote implica perdas significativas para os trabalhadores mais vulneráveis.

Segundo um apoiador convicto do governo, a mudança do cálculo do salário mínimo e do abono salarial será responsável por um terço da economia prevista até 2030 (“serão 110 bilhões de reais a menos para o bolso dos mais pobres”). Isso sem considerar os efeitos a médio prazo da desvalorização do real frente ao dólar e do provável aumento da inflação, que também machuca sempre mais fortemente os mais carentes.

Manipular a percepção da sociedade não é uma estratégia incomum. Em momentos de crise, os governos tentam mitigar o impacto de medidas impopulares com anúncios atraentes

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Aparentemente, a mão chamativa da isenção no Imposto de Renda não está surtindo os efeitos esperados. Não provocou um sentimento de ganho imediato ou alívio econômico, até porque a isenção não virá tão cedo (e nem é certo que ela seja aprovada no Congresso, dependendo do contexto da economia daqui a quatro ou cinco meses).

Ao contrário, está prevalecendo a percepção de que os efeitos práticos da mão discreta na vida cotidiana do trabalhador serão muito maiores – e chegarão mais depressa. As contradições na narrativa ficaram evidentes, na medida em que promessas de inclusão social e justiça econômica são comprometidas por medidas que beneficiam elites econômicas e prejudicam os trabalhadores.

É importante lembrar que o Brasil viveu uma situação parecida em janeiro de 2015, logo após a reeleição de Dilma Rousseff. Naquele momento, em um contexto que também era de deterioração das contas públicas, o plano formulado pelo ministro Joaquim Levy tentou restaurar a economia e a confiança do mercado por meio de medidas como: corte de gastos públicos, mudanças nos benefícios trabalhistas (incluindo alterações no seguro-desemprego), aumento de impostos e ajustes tarifários.

O plano de Levy, bem mais abrangente que o anunciado nesta semana por Fernando Haddad, também enfrentou forte resistência política, teve impacto social negativo e contribuiu para o aprofundamento da crise – que, naquele caso, resultaria no impeachment de Dilma, no ano seguinte.

Diferentes fatores levaram aquele plano a fracassar, incluindo a resistência do Congresso, já que Dilma tinha uma base aliada fragmentada, e a falta de articulação política do Governo, o que agravou a deterioração da confiança do mercado e da população. Base fragmentada e articulação frágil são problemas que o governo atual também enfrenta.

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Mas aquele plano também fracassou por causa da percepção de que o governo Dilma estava traindo compromissos de campanha de 2014, como a ampliação de programas sociais, o que gerou frustração entre seus próprios eleitores e nos chamados movimentos sociais. Ela estava traindo o alardeado compromisso do governo com a justiça social e com a narrativa de apoio às classes de renda mais baixa.

Resultado: a aprovação de Dilma despencou, os protestos contra o governo se multiplicaram, e a frustração com a economia fez uma parte significativa da população apoiar o impeachment.

Toda mágica tem seus riscos. Assim como no ilusionismo, quando o público percebe o truque – ou seja, que a isenção foi usada para mascarar as medidas impopulares do pacote – ele passa a vaiar o mágico. Se a percepção do benefício da isenção for inferior à percepção do malefício dos cortes, a insatisfação da população tende a crescer, mesmo entre aqueles que votaram em Lula, agravando a erosão da confiança pública em seu governo. Ficará cada vez mais difícil manter a atenção da plateia focada naquilo que se quer destacar.