Muito já se falou sobre os “pobres de direita”, termo cunhado para desqualificar e ofender os eleitores das classes menos favorecidas que apoiaram o impeachment de Dilma, votaram contra o PT nas eleições municipais de 2016 e elegeram Bolsonaro em 2018. Diante do desempenho medíocre da esquerda no primeiro turno das eleições realizadas ontem, o termo já voltou a circular no campo progressista.
(Fenômeno ainda mais interessante e relevante para se entender o contexto atual do país é o dos “ricos de esquerda”, que analisarei no próximo artigo. Por ora, vamos aos tais “pobres de direita”.)
Quando o povo (e não as elites, evidentemente) elegeu Bolsonaro, a reação dos políticos, intelectuais e artistas de esquerda foi mais ou menos a seguinte: “Como assim? A gente trabalha tanto para preservar e capitalizar politicamente a miséria, e é assim que esses pobres ingratos retribuem? A gente compra honestamente os votos dos miseráveis com uma esmola mensal, e na hora da eleição eles votam nos fascistas? Brasileiro é muito burro mesmo!”
O uso da expressão tem uma função catártica para os esquerdistas. Basta pesquisar no Google “pobre de direita” para ver o “ódio do bem” contra os pobres ser destilado em dores cavalares (mas é a direita que é preconceituosa). Os brasileiros mais humildes são comparados a escravos que apoiam escravagistas, diagnosticados como doentes mentais e chamados de jumentos. Do alto de sua superioridade moral, o máximo que os intelectuais concedem é que não se deve odiar esses pobres, mas ter pena deles, por serem tão burros e imbecis.
Mas o “pobre de direita” não passa de uma abstração. No Brasil o voto dos pobres não é ideológico, mas pragmático. E é compreensível que seja assim: eles vivem tão precariamente que muitas vezes pensam e votam com o estômago. Não se pode exigir de quem não sabe quando vai fazer a próxima refeição que entenda a diferença entre direita e esquerda, nem que cobre dos políticos investimentos na educação e na geração de postos de trabalho, nem que demonstre fidelidade a determinado partido, quando a crise aperta.
O brasileiro miserável não vota em candidatos de esquerda ou de direita, vota nos candidatos que oferecem ajuda concreta a curto prazo, sobretudo na forma de programas assistencialistas que lhe garantam a sobrevivência.
O brasileiro miserável não tem tempo para entender a importância de políticas públicas de longo prazo para a erradicação da miséria (e não a sua administração permanente, como forma de um partido se perpetuar no poder).
O brasileiro miserável sabe que não pode esperar – e tem muitos motivos para desconfiar de promessas de soluções a longo prazo, cujos resultados demoram a aparecer. Sobretudo se essas promessas são feitas por políticos durante a campanha eleitoral.
Foi por isso que a esquerda se desesperou quando percebeu o impacto do auxílio emergencial criado pelo Governo federal para mitigar os efeitos da pandemia. O programa foi criado pela Lei 13.982/2020, sancionada por Jair Bolsonaro no dia 2 de abril, e representou um duro golpe no campo lulopetista, ferido de morte em seus principais currais eleitorais.
São números realmente impressionantes: segundo a Caixa, 67,7 milhões de brasileiros – o equivalente a um terço da população do país – receberam o auxílio. Desses, 38 milhões eram pessoas invisíveis, tão pobres que seus nomes não constavam em nenhum cadastro oficial e, portanto, foram ignoradas até pelo Bolsa Família. É um Brasil subterrâneo, que estava à margem de todas as estatísticas, com uma população maior que a do Canadá
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas publicado em outubro revelou que, graças ao programa de auxílio emergencial, o número de brasileiros abaixo da linha de pobreza – ou seja, aqueles com renda domiciliar per capita inferior a meio salário mínimo – recuou impressionantes 23,7%, atingindo nova mínima de 50 milhões de pessoas, o nível mais baixo da série histórica. Em plena pandemia, 15 milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza.
Esta foi, apenas, a maior ação de inclusão social da História do Brasil: mais de R$ 230 bilhões foram diretamente injetados nas contas de quem realmente precisa. A projeção é que, até o final de 2020, tenham sido gastos R$ 322 bilhões, o que equivale, em nove meses do programa, a nove anos de Bolsa Família.
E esta ação foi feita por um governo de direita.
Um fator determinante do crescimento da direita e da onda conservadora no Brasil foi a adoção, pela esquerda, de pautas progressistas que agridem os valores dos brasileiros comuns
A esquerda ficou ainda mais desesperada quando analisou os números mais de perto. Mais de um terço do valor pago (R$ 66,7 bilhões) foi para a Região Nordeste, onde a redução da pobreza chegou a 30,4% – com a aprovação de Bolsonaro aumentando na mesma proporção.
O Nordeste é a última trincheira do lulopetismo, como demonstrou a eleição de 2018: para refrescar a memória do leitor, o mapa abaixo mostra a divisão dos votos no segundo turno, indicando o vencedor por unidade da federação:
Ora, as últimas pesquisas de popularidade mostram, com algumas oscilações para cima ou para baixo, um apoio persistente (quando não crescente) ao governo Bolsonaro nos estados que a esquerda sempre considerou como um quintal, uma propriedade privada na qual ela mandava – usando o Bolsa família como moeda de troca – e o povo obedecia, em uma versão atualizada do voto de cabresto.
Isso significa que os pobres do Nordeste eram de esquerda e estão migrando para a direita? Não. Significa que os pobres não votam por ideologia e que, portanto, a premissa de que os pobres tendem a votar em candidatos e partidos de esquerda é falsa. Como afirmou recentemente a cientista social Esther Solano à “Folha de S.Paulo”: "Quando você está à beira da fome, sua vida está pautada por coisas muito mais concretas e mais de subsistência do que de estratos ideológicos".
É claro que não é só isso. Outro fator determinante do crescimento da direita e da chamada onda conservadora no Brasil foi a adoção, pela esquerda, de pautas progressistas que agridem os valores morais dos brasileiros comuns. Quando a esquerda defendeu uma performance artística que colocava uma criança em contato físico com um adulto nu (para deleite da plateia, formada por adultos vestidos), eu escrevi: “Continuem mexendo com crianças e vão eleger Bolsonaro no primeiro turno”. O mesmo se aplica à defesa do aborto, da liberação das drogas e outras formas de ativismo totalmente dissociadas do Brasil real.
“Ain, mas a popularidade de Bolsonaro aumentou por causa do auxílio emergencial...”, argumentará o leitor lacrador. Isso é óbvio, da mesma forma que foi principalmente por causa do Bolsa-Família que os eleitores daqueles estados elegeram e reelegeram governos do PT entre 2002 e 2014 - até que chegou a conta da incompetência e da corrupção, e a economia desmoronou. O povo não perdoou e foi para as ruas – e passou a ser estigmatizado como “pobre de direita”.
Pobres não são de direita nem de esquerda. São apenas pessoas a quem não foram dadas oportunidades de educação e trabalho que possam realmente tirá-los da situação dramática em que vivem, geração após geração. Enquanto não forem criadas essas oportunidades, os pobres votarão no candidato que garantir o básico para que não morram de fome, seja de que partido ele for.
No próximo artigo falarei sobre os ricos de esquerda.
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Sobre o desempenho da esquerda na eleição de ontem, foi notável o esforço da grande mídia para vender a ideia de que a esquerda renasceu. Mais uma vez, o discurso não correspondeu aos fatos. Em São Paulo, com a desidratação do PT, que historicamente sempre colocou um candidato no segundo turno, era natural que alguém herdasse os votos do partido, e a verdade é que ninguém aposta em Boulos contra Covas.
No total de prefeitos eleitos no Brasil, o MDB liderou (754), seguido pelo PP (666), PSD (631), PSDB (486), DEM (450) e PL (335). Só então aparecem o PDT (304) e o PSB (245). O PT elegeu 174, o PCdoB 45 e o PSOL quatro prefeitos. Nas capitais, sete prefeitos foram eleitos no primeiro turno: três do DEM, dois do PSD e dois do PSDB. No segundo turno, realisticamente, o que a esquerda pode esperar é eleger dois prefeitos do PDT, dois do PSB e um do PSOL.
Como já escrevi nesta coluna, a importância que a mídia dá aos partidos de esquerda é hoje totalmente desproporcional à sua representatividade política.