Passada uma semana da eleição mais apertada desde a redemocratização do país, os ânimos continuam acirrados. Não se percebe na sociedade aquele clima de descompressão que é comum após a divulgação do resultado, com as pessoas exaustas e precisando voltar à rotina – felizes ou tristes, mas dispostas a olhar para frente.
Não se vislumbra, tampouco, mudança no comportamento daqueles atores que deveriam ser fiadores da isonomia do processo eleitoral. Ao contrário: também para eles parece que o pleito ainda não acabou, que a campanha continua. Aparentemente, o comportamento atípico e claramente partidário de alguns se tornará norma. Como se tivessem pegado gosto.
Basta dizer que contas nas redes sociais continuam sendo sumariamente canceladas, e vídeos e postagens continuam sendo sumariamente suprimidos, com uma rapidez espantosa, por meio de decisões judiciais – até mesmo contas de deputados eleitos com mais de 1 milhão de votos.
O caso mais recente foi o de um ex-secretário da Receita Federal e candidato a vice-presidente nesta última eleição, cujo nome nao vou citar porque não sei se é permitido. Ele teve sua conta no Twitter sumariamente suspensa hoje, após fazer ponderações bastante razoáveis sobre os recaptáculos de votos. E terá que se explicar à Políca Federal.
Por essas e outras só aumenta a percepção de que, sob o argumento do combate a mentiras e fake news, a censura foi reimplantada no Brasil, e medidas de exceção para calar ou constranger o outro se tornaram aceitáveis e mesmo desejáveis.
Costuma-se dizer que, em uma guerra, a primeira vítima é a verdade. Nesta campanha, a maior vítima foi, seguramente, a liberdade de expressão. Esta já deixou de existir quando um lado pode falar o que quiser, e o outro tem que ficar medindo cuidadosamente as palavras.
Por sua vez, boa parte do eleitorado do candidato derrotado tem a convicção de que foi, de uma forma ou de outra, burlada – não por irregularidades nos citados receptáculos, mas pela falta de isonomia do processo. Não é o habitual choro de perdedor: é revolta de quem acredita firmemente que esta não foi uma eleição normal.
Tenho a impressão de que esta percepção contamina até a parcela não-ideológica do eleitorado que votou no candidato vencedor: tanto que a festa pela vitória foi bem menor do que se esperava: de forma geral as ruas ficaram vazias (quem continua ocupando as ruas, aliás, é a direita). E o alívio provocado pela derrota do candidato ao qual metade do Brasil tinha aversão veio acompanhado de apreensão em relação ao que acontecerá no futuro.
Na semana que passou, a energia desta revolta do eleitorado derrotado foi catalisada e aglutinada pelas manifestações dos caminhoneiros – uma categoria cujo apoio é estrategicamente importante para qualquer presidente: basta lembrar o estrago causado ao governo Temer pelas paralisações nas estradas, em maio de 2018.
Foram mais de mil bloqueios nos ultimos dias, em diversos estados, sem falar nos protestos - ordeiros e pacíficos - em praças e outros espaços públicos. Algumas imagens que chegaram a circular na internet antes de serem misteriosamente apagadas (mas que não apareceram na grande mídia, desnecessário dizer) são impressionantes.
Qual foi a reação? Entender a motivação dessas pessoas e buscar o diálogo? Assumir compromissos com as regras da democracia? Não. A reação foi desqualificar como golpistas os caminhoneiros e os brasileiros comuns que foram às ruas manifestar sua indignação de forma pacífica, e rotular os protestos como antidemocráticos e fascistas. Não é assim que o amor vai vencer.
Ou seja, não há qualquer esforço aparente de pacificação, nenhuma mão estendida, nenhum gesto de conciliação, ao contrário: o esforço que se percebe é para calar e intimidar a metade do eleitorado que votou no candidato perdedor. Não foi pouca gente. A não ser nas ditaduras mais ferozes, tentar calar dezenas de milhões de pessoas na marra não tem como dar certo.
A desconfiança, o medo e a incerteza estão prevalecendo sobre a necessidade de virar a página da eleição e traçar estratégias realistas para o futuro
O consórcio da grande mídia também emite sinais de que a parceria estabelecida na campanha continua: por exemplo, o orçamento secreto, vendido ao longo de toda a campanha como o maior escândalo de corrupção do planeta, simplesmente saiu das manchetes e passou a ser chamado de "emendas do relator". Estas, aliás, vão continuar acontecendo, agora entendidas como uma prática inofensiva.
Diante da estranheza dos leitores, o perfil de um grande jornal no Twitter respondeu afirmando que sempre usou “emendas do relator” no noticiário. Foi desmentido em poucos minutos. Não vi nenhuma retratação.
O mal estar é generalizado, e o terceiro turno começou mais cedo do que se esperava. Neste ambiente, a desconfiança, o medo, a preocupação e a incerteza prevalecem sobre a necessidade de virar a página da eleição e traçar estratégias realistas e pragmáticas para o futuro.
É claro que o impacto disso tudo na economia será inevitável, impacto que pode ser agravado pela demora da definição da nova equipe econômica.
Em suma, um lado continua se comportando como se ainda estivesse em busca de votos, e o outro deposita toda a sua energia na esperança de relatórios secretos das Forças Armadas ou outras surpresas que provocariam um plot twist, uma mudança radical, ainda que tardia, no roteiro da eleição.
Em que pese a importância dos protestos como uma mensagem da sociedade, e por grave que seja o cerceamento em curso à liberdade de manifestação, direito fundamental em qualquer democracia, dificilmente isso vai acontecer. A transição já começou, e quem entende a política como um jogo de tudo ou nada geralmente fica sem nada.
Fato é que as duas metades da fraturada sociedade brasileira continuam a se demonizar, e o novo governo nem sequer tomou posse. Nada de bom pode vir daí.
O fator Alckmin
Para não dizer que eu não falei de flores: pequenos consolos para o cidadão que se preocupa com os rumos da economia são o protagonismo de Geraldo Alckmin na condução da transição e o noticiado convite aos economistas tucanos Pérsio Arida e André Lara Resende para participar da equipe (as coisas mudam: vejam neste link como a esquerda já tratou esses economistas), bem como o ainda por confirmar convite a Henrique Meirelles para assumir o Ministério da Fazenda.
Esses movimentos podem ser interpretados como sinais de que o próximo governo será mais tucano e menos petista do que aqueles que vimos entre 2003 e 2016 – com a tesoura mais moderada e responsável do chamado “teatro das tesouras” prevalecendo, por assim dizer.
Em breve saberemos se esta é realmente uma tendência ou apenas jogo de cena: já há controvérsias, como mostra este artigo.
Alckmin, que aliás conta com a boa vontade do consórcio, ressurge das cinzas depois de passar a campanha meio cabisbaixo e aparentemente contrariado.
Recapitulando: o sentido e a motivação do convite a Alckmin para ser vice na chapa para presidente e vice eram liberar o caminho para Haddad se eleger governador em São Paulo, o que seria muito mais fácil sem a concorrência do político tucano.
(Já a motivação de Alckmin para aceitar o convite... melhor deixar pra lá. Mas pode ter relação com a “maldição do vice”).
Como esta parte do plano não deu certo, e o eleito em São Paulo foi Tarcísio, seria até compreensível que Alckmin fosse escanteado após a eleição. Não é o que se está vendo.
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