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De todos os motivos para apreensão associados à Reforma Tributária aprovada na Câmara dos Deputados na semana passada, e não são poucos (conselho federativo, cashback, indefinição das alíquotas etc), um me parece particularmente preocupante: o imposto seletivo que incidirá sobre produtos e serviços prejudiciais à saúde e ao meio-ambiente – também chamado de “imposto do pecado”.
Como sempre, a pegadinha aqui é usar uma bandeira inatacável – quem pode ser contra a defesa da saúde e do meio-ambiente? – para justificar a potencial tributação de basicamente qualquer coisa.
(É mais ou menos como usar a defesa da democracia como justificativa para relativizar a liberdade de expressão: quem pode ser contra a defesa da democracia? O truque é tão manjado quanto eficaz.)
Porque, vamos ser francos, não há hoje produto ou serviço que, em alguma medida e seguindo determinado critério, não possa ser considerado nocivo à saúde e ao meio-ambiente.
Se o texto da reforma falasse especificamente na tributação de cigarros e bebidas alcoólicas, tudo bem – ainda que isso prejudicasse quem votou acreditando na promessa da cervejinha com picanha. Aliás, nada impede que a picanha também seja tributada, já que os gases emitidos pelos bovinos (no popular, o pum da vaca) aumentam o efeito estufa e o aquecimento global.
Ocorre que cigarros e bebidas alcoólicas já pagam há décadas altas alíquotas do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), como política de saúde pública. Não será daí que virá o impacto do imposto seletivo, portanto. E como, da forma nada taxativa como foi aprovado, o texto abre a porteira para tornar tudo tributável, é de se supor que o imposto do pecado tenha siso criado mirando em outros alvos.
Com a justificativa de desestimular comportamentos nocivos à sociedade, o imposto do pecado pode ser apenas mais uma maneira de aumentar a arrecadação estrangulando quem trabalha e produz
O problema é: quem decidirá o que é nocivo? Quem pesará os custos e benefícios dessa tributação? Agrotóxicos, evidentemente, necessitam de rigorosa e permanente regulação, mas se todos os defensivos agrícolas forem simplesmente sobretaxados com base no enquadramento no imposto do pecado, parece evidente que isso afetará o desempenho do agronegócio – que é basicamente a locomotiva do país hoje.
O mesmo vale para os chamados alimentos ultraprocessados: ora, mais da metade do que é vendido nos supermercados pode ser considerado ultraprocessado; como os impostos são sempre repassados para o consumidor, já dá para imaginar quem pagará a conta. E não serão as elites: estas não consomem suco de frutas de caixinha e só compram produtos orgânicos que custam o triplo do preço.
As elites não comem mortadela, presunto, salsicha, macarrão instantâneo, pães industrializados, iogurte, sorvete e molho de tomate – alguns dos itens comumente citados como ultraprocessados. O bolso mais afetado será o dos mais pobres – que aliás as elites progressistas gostam de defender em postagens lacradoras nas redes sociais.
Da mesma forma, quem será prejudicado pela sobretaxação de veículos poluentes (o IPVA ecológico) é o cidadão de classe média que penou para comprar um carro usado em prestações a perder de vista, não o seu patrão rico, que pode gastar 500 mil reais em um carro elétrico isento de impostos por proteger a natureza.
Ora, a não ser que more no meio do mato e se alimente da comida que você mesmo planta, você é inevitavelmente um poluidor e consumidor de produtos que prejudicam sua saúde e o meio-ambiente.
Do seu aquecedor a gás ao seu aparelho de ar condicionado, passando pelas embalagens de suas compras e pelos meios de transporte que você usa (a não ser que você só se desloque a pé, de bicicleta, ou barco a remo ou a vela), virtualmente todos os produtos e serviços que você usa e consome na vida cotidiana estão potencialmente sujeitos ao enquadramento no imposto seletivo, o que resultará, na prática, em encarecimento da carga tributária para empresas e pessoas físicas.
Com a justificativa de desestimular comportamentos nocivos à sociedade, o imposto do pecado pode ser apenas mais uma maneira de aumentar a arrecadação estrangulando quem trabalha e produz – e já paga muito mais impostos do que deveria, a julgar pelo que retorno que recebe em serviços públicos.