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Viralizou nos últimos dias nas redes sociais o post abaixo, no qual um internauta ironiza os ignorantes que não entenderam a suposta metáfora da picanha:
“Já pensou ter que explicar para um marmanjo de quase 30 anos que ‘picanha e cerveja’ é uma metáfora? Que não é sobre beber e comer churrasco, é sobre o pobre voltar a comer bem, ter poder de compra e lazer. É sobre o próximo parar de comprar osso ou procurar comida no lixo”
Chutando por baixo, eu diria que 75% da população brasileira adulta não fazem a menor ideia do que seja uma metáfora. Outros 20% talvez digam: “Eu sei o que é, mas não sei explicar”.
Graças ao êxito do projeto educacional implantado neste país ao longo de muitas décadas, acredito que somente 5% da população, em um palpite otimista, efetivamente sabem definir razoavelmente uma metáfora.
Mas, com certeza, 100% dos brasileiros adultos sabem o significado de cerveja e picanha.
Promessas de campanha têm um lado ruim: quando não se entrega o que se prometeu, os eleitores podem ficar chateados, ou mesmo se sentir enganados, e aí a oposição tem o argumento do estelionato eleitoral. Vale para todo mundo. Que o digam FHC e Dilma, em seus segundos mandatos.
Não sei não, mas tenho a impressão de que, para muitos eleitores, o churrasquinho nos finais de semana não era uma figura de linguagem, era churrasquinho mesmo. E chamar esses eleitores de burros não ajuda em nada, ao contrário: pode deixá-los ainda mais irritados.
(Aliás, se a metáfora fosse sobre “comer bem”, teriam prometido salada e suco de fruta, já que uma dieta à base de picanha e cerveja não é exatamente saudável. Mas repararam que a turma da lacração vegana nem se incomodou com o incentivo ao consumo de carne? “Ain, é porque a picanhe era metáfore...” Não. É porque no Brasil, já há muito tempo, não importa aquilo que se diz, mas quem diz.)
Eu torço, sinceramente, para que todos os brasileiros tenham condições de se alimentar bem. Mas para isso será necessário que a inflação continue em baixa, que o desemprego continue caindo e que o PIB continue subindo, como nos últimos meses.
Por mais que se tente, não se pode reduzir o mundo a uma questão de linguagem: a realidade sempre acaba prevalecendo
Torço também, evidentemente, para que a Constituição seja respeitada, para que haja respeito à propriedade privada e à liberdade de expressão, para que os três Poderes trabalhem em harmonia e para que o novo governo não adote medidas fadadas ao fracasso, ainda que proporcionem a ilusão de uma melhora imediata, como o controle de preços. Basta olhar para a Argentina, onde a inflação projetada já ultrapassa 100% ao ano.
A inflação não é uma metáfora. Aliás, sempre que a economia degringola, os primeiros a sofrer as consequências são os mais pobres e desassistidos, que não têm para onde correr – diferentemente dos intelectuais e das elites.
Tomara que a inflação não volte, como acontece na Argentina. Ao contrário de muita gente, nunca vou defender o “quanto pior melhor” para o meu país. Mas a realidade nem sempre corresponde à expectativa.
Como disse Ayn Rand, "Você pode desprezar a realidade, mas não vai conseguir fugir das consequências de desprezar a realidade". Porque, por mais que se tente, não se pode reduzir o mundo a uma questão de linguagem. A realidade sempre acaba prevalecendo.
Mark Twain, por sua vez, dizia que é mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que elas foram enganadas, e estava certíssimo. Mas há um limite para o poder das narrativas. E, diante dos últimos acontecimentos, acho que, se a inflação voltar a subir, a paciência do povo será curta.
Não falo somente do eleitor que acreditou que a picanha era de verdade, mas especialmente daqueles eleitores que votaram no PT movido não pela crença na picanha nem por qualquer afinidade com a esquerda, mas por pura aversão a Bolsonaro. Não foram poucos.
Por exemplo, já causou estranheza um grande jornal, no dia seguinte ao segundo turno, passar subitamente a chamar o orçamento secreto de “emendas do relator”, como na notícia abaixo:
Ou seja, de repente não mais que de repente, o orçamento secreto, um dos temas mais explorados da campanha eleitoral, classificado como o maior escândalo de corrupção da história do planeta, mudou de nome e passou a ser tratado como algo comezinho, que pode ser objeto de um acordo entre os Poderes.
O próximo passo será um internauta postar, em tom de ironia superior:
“já pensou ter que explicar para um marmanjo que o orçamento secreto era uma metáfora? Que não era sobre o maior escândalo de corrupção de todos os tempos, era sobre um truque de linguagem destinado a enganar os desavisados e conquistar votos? E que basta a mídia parar de falar neste assunto para ficar tudo bem? Ninguém nunca entendeu direito mesmo o que era orçamento secreto, ninguém vai reparar se não se falar mais nisso.”
É sobre isso e está tudo bem?
Mas não são só a picanha e o orçamento secreto. O candidato eleito assumirá com várias bombas para desarmar – como aliás afirmou em artigo recente o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nobrega:
“Promessas de mais empregos e aumentos reais de salários são incompatíveis com a situação fiscal e com o baixo potencial de crescimento da economia”, escreveu, sugerindo que fantasias estão sendo vendidas para a sociedade. “A economia não gira a golpes de retórica”.
No contexto atual, aumento real do salário mínimo, isentão, digo, isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, Auxílio Brasil de R$ 600 vitaminado com mais R$ 150 para mães com crianças de até 6 anos, entre outras, foram outras promessas do candidato eleito que parecem difíceis de implementar em 2023.
Caso essas medidas não sejam implementadas, será que vai aparecer algum militante ironizando os ignorantes que acreditaram nas promessas do candidato, por não entenderem que também eram metáforas?
Como será que o eleitor da agora oposição e o eleitor não-ideológico, que deu um voto condicional ao PT, irão reagir? Será que o presidente tinha razão quando disse que vão sentir falta dele? Só o tempo vai dizer. Mas, como as ruas já estão demonstrando, fato é que o novo presidente assumirá sob muita pressão, e em circunstâncias muito menos favoráveis que em 2003. O Brasil mudou muito.
Concluo com uma citação de Santa Teresa d’Ávila: “Mais lágrimas são derramadas pelas preces atendidas do que pelas preces não atendidas”. Que o leitor interprete como quiser.
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