Escrevi em mais de uma ocasião – por exemplo, em meu livro “Guerra de Narrativas – A crise política e a luta pelo controle do imaginário” (2018), mas também neste artigo, que o destino de um presidente depende em grande medida da combinação do comportamento de cinco atores:
- o comportamento do mercado;
- o comportamento das ruas;
- o comportamento da classe política;
- o comportamento do Poder Judiciário;
- o comportamento da mídia.
Há um desequilíbrio permanente e dinâmico entre esses cinco atores, e é claro que existem forças minoritárias em conflito e distintos grupos de interesse disputando poder dentro de cada um deles. Mas, como na mecânica clássica, sempre há um vetor resultante que prevalece e determina o sentido final do movimento.
De tempos em tempos, contudo, ocorrem situações raras nas quais a ação de todos esses atores é coordenada e harmônica, como nas crises que levaram ao impeachment de Fernando Collor, em 1992, e de Dilma Rousseff, em 2016. Quando os cinco atores atuam de forma concertada para derrubar um governo, não há presidente que resista.
(Um possível sexto ator, as Forças Armadas, não teve qualquer papel relevante nas crises citadas, limitando-se nos dois casos à sua missão institucional – como deve ser. Por compreensível que seja a indignação, é vã a esperança de parte do eleitorado derrotado de que, na crise atual, o comportamento dos militares será diferente. A nostalgia da ditadura militar é tão insensata e perigosa quanto a nostalgia da época fabulosa e fantasiosa em que o amor reinava e todos os pobres comiam picanha e andavam de avião.)
Contra Collor e contra Dilma, aconteceu o que se convencionou chamar de “tempestade perfeita”, uma conspiração de circunstâncias negativas que levaram ao consenso de que a continuidade do governo se tornara insustentável.
Pois bem, há uma percepção generalizada de que. ao longo dos quatro anos do governo que ora se encerra, dois dos atores citados – a grande mídia e o Poder Judiciário – se empenharam abertamente para estimular crises que abreviassem a estadia do presidente no Planalto.
Não deu certo: não conseguiram criar uma tempestade perfeita porque nem a classe política nem o mercado, este incompreendido, compraram a tese do “ele não”. Por sua vez, as ruas, historicamente monopolizadas pela esquerda, mudaram definitivamente de lado, com a direita se mostrando capaz de mobilizar milhões de pessoas.
Ainda assim, é evidente que a sabotagem incessante atrapalhou bastante o governo, inviabilizando talvez a sua reeleição. Mas também gerou, em metade da sociedade, o sentimento de que o processo eleitoral não foi conduzido de forma justa e isonômica.
(Alias, sabotagem parecida aconteceu contra Michel Temer, quando uma tentativa orquestrada de golpe foi frustrada, mas serviu para quebrar uma das pernas de um presidente que até ali ia muito bem, aprovando reformas e preparando uma volta suave do país à normalidade; em seguida, a greve dos caminhoneiros quebrou a outra perna.
Voltarei a falar dos caminhoneiros. Fato é que, com Temer sabotado e imobilizado, pavimentou-se o caminho para a polarização radical da sociedade brasileira, que levou à eleição de Bolsonaro em 2018 – e à sua derrota em 2022. Escrevi sobre as nefastas consequências da tentativa de golpe contra Temer no artigo “O dia em que o Brasil descarrilou de vez”.)
Não se vê sequer aquela descompressão habitual depois de uma eleição, ao contrário: a corda parece cada vez mais esticada
Pois bem, ainda estamos na chamada transição, mas, com exceção de determinadas bolhas, o clima generalizado em relação ao próximo governo é de apreensão e pessimismo crescentes.
Não se vê sequer aquela descompressão habitual depois de uma eleição, ao contrário: a corda parece cada vez mais esticada, e os ânimos continuam acirrados. Não há trégua no país dividido, muito menos lua-de-mel.
Isso sem falar nos arrependidos precoces. Por exemplo, nunca antes na história desse país economistas célebres que apoiaram o candidato vitorioso – e contribuíram fortemente para elegê-lo – começaram a se afastar dele antes mesmo da posse, preocupados talvez com a preservação da própria imagem.
É o caso de Henrique Meirelles, que, descartado depois de ter sido usado – muito usado – para dar uma face moderada à candidatura vitoriosa, agora se declara pessimista, prevê uma recessão e deseja ironicamente “boa sorte” aos investidores.
E também de Persio Arida, que hoje parece assustado com o teor da PEC da Gastança. Por sua vez, Arminio Fraga, que durante a campanha fez até uma “entrevista por telepatia” com um imaginário Lula moderado, assinou ontem, ao lado de Pedro Malan e Edmar Bacha, uma inusitada carta aberta ao presidente eleito, alertando para os riscos da irresponsabilidade fiscal.
(Continua)
De costas para o futuro
Em seu clássico ensaio “O anjo da História”, o pensador da Escola de Frankfurt Walter Benjamin escreve:
"Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da História deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.
Nesta inventiva representação da História, a sociedade marcha de costas para o futuro, ao sabor do vento, perplexa, assustada, à deriva, movida pela aversão ao passado recente e incapaz de olhar para frente.
Esta imagem diz muito sobre o momento atual da política brasileira.