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Luciano Trigo

Luciano Trigo

A Revolta da Vacina e a vacina da discórdia

(Foto: Wikipedia)

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Em alguns aspectos fundamentais, o Brasil não mudou tanto assim entre 1904 e 2020. Foi a sensação que eu tive, ao pesquisar a cobertura que os jornais da época deram à chamada “Revolta da Vacina”. No levante popular ocorrido no Rio de Janeiro naquele ano, em reação a um projeto de lei que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola, podemos enxergar, como num espelho, traços que ainda definem nosso caráter como nação.

Epidemia era o que não faltava. A varíola era apenas uma das que grassavam no Rio, então capital da República – ao lado da febre amarela, do sarampo, da tuberculose, do tifo, da hanseníase, da peste bubônica etc, sobrecarregando o já precário sistema hospitalar.

O inspirador do projeto de etc. vacinação obrigatória, publicado em 9 de novembro, foi o médico e sanitarista Oswaldo Cruz, recém-chegado da França e nomeado diretor geral da Saúde Pública pelo presidente Rodrigues Alves. Hoje ele é visto como herói, mas na época seu plano de vacinação em massa foi pessimamente recebido pela população e por parte da mídia.

Já no dia seguinte ao decreto, vieram as primeiras agitações populares, que se multiplicaram até transformar a cidade em uma praça de guerra, com direito a barricadas nas ruas, casas apedrejadas, lojas depredadas, invasão de delegacias e quartéis, bondes tombados e incendiados no meio da rua, fios de iluminação pública cortados e enfrentamento armado entre os revoltosos e a polícia.

O decreto determinando a vacinação obrigatória saiu no dia 9. No dia 10, estimulados por lideranças como o estivador e capoeirista Prata Preta, moradores do bairro da Saúde saíram às ruas para protestar. No dia 11, houve a primeira troca de tiros. Nos dias 12 e 13, o caos se instalou em vários pontos da cidade.

A “Gazeta de Notícias” de 14/11/1904 noticiava: “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados à pedrada, árvores derrubadas, edifícios públicos e particulares deteriorados”.

Naquela mesma data, cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha se aliaram aos manifestantes. Praças e ruas foram ocupadas em protestos violentos, nos quais paralelepípedos eram lançados contra os policiais, aos gritos de “Abaixo a vacina!”. Tropas de outros estados precisaram ser convocadas para ajudar na repressão à população. A reação popular fez o governo suspender a obrigatoriedade da vacinação.

Como os ministros do STF acabaram de aprovar a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19, em meio à resistência de uma parcela da população – e, aparentemente, do próprio presidente – vale a pena destacar algumas curiosidades sobre a Revolta da Vacina. Muito possivelmente, como o episódio de 1904, a discórdia de 2020 em torno da vacina da Covid-19 será tema de estudo de historiadores, no futuro.

O contexto

Mesmo sendo a capital da república, o Rio de Janeiro apresentava problemas urbanos crônicos, e alguns persistem até hoje: coleta de lixo precária; rede de água e esgoto insuficiente para atender à demanda; proliferação de sub-habitações nas encostas dos morros etc.

A cidade era destino de grandes levas de imigrantes e de escravos libertos em busca de oportunidades de trabalho. Com o aumento da chegada de navios no porto, a população praticamente dobrou em menos de duas décadas. Em cortiços e favelas, famílias inteiras moravam em um único cômodo. Ratos e mosquitos faziam a festa.

Despreparado para esse ritmo de crescimento, a cidade passou a enfrentar surtos periódicos de diversas doenças potencialmente fatais: só em 1904, a varíola matou quase 4.000 pessoas (em uma população de 800.000).

Para combater esse caos, o presidente Rodrigues Alves e o prefeito Pereira Passos decidiram modernizar a cidade, demolindo casarões e cortiços e construindo e alargando avenidas, na reforma que ficou conhecida como “Bota-Abaixo”.

No processo, quarteirões inteiros de habitações populares foram demolidos, e milhares de pessoas foram despejadas. Os aluguéis subiram de preço, e, sem ter para onde ir, muitas foram morar nos morros, impulsionando o crescimento das então incipientes favelas da cidade. Estima-se que pelo menos 15 mil pessoas foram expulsas de suas casas.

Tudo isso provocou um ambiente de enorme insatisfação popular. A missão de Oswaldo Cruz de acabar com as epidemias – que se inseria dentro de um projeto maior de modernização urbana – esbarrou nesse clima de cansaço e revolta da população contra medidas do governo percebidas como arbitrárias e violentas.

O jeitinho brasileiro

Antes de se dedicar à vacinação contra a varíola, Oswaldo Cruz atacou a febre amarela, criando as “Brigadas Mata- Mosquitos” – equipes de funcionários do Serviço Sanitário que entravam nas casas (nem sempre de forma educada) para combater o mosquito transmissor e debelar os focos da doença. Relatos da época indicam que esses servidores tinham poder para ordenar reformas, interdições e mesmo demolições.

Já para enfrentar a peste bubônica, o médico e sanitarista promoveu uma campanha de extermínio dos ratos da cidade. Para incentivar o povo a colaborar, o Governo ofereceu uma recompensa em dinheiro para quem entregasse tantos ratos mortos – mas o efeito foi o oposto ao esperado.

Aqui entrou em cena o jeitinho brasileiro: para aumentar sua renda, várias pessoas passaram a fazer criação de ratos para matar e vender – o que acabou agravando a disseminação da doença. Diante das fraudes, o governo suspendeu a recompensa pela entrega de roedores mortos.

As “fake news”

Em 1904, logo se espalharam boatos de que a vacina seria aplicada nas “partes íntimas” (coxas e nádegas), e que as mulheres seriam obrigadas a se despir para os agentes da saúde. Em uma época na qual um tornozelo descoberto causava escândalo, mesmo despir os braços para a aplicação da vacina era algo percebido como imoral por chefes de família. Além disso, jornais da oposição publicaram denúncias de que os vacinadores abusariam das moças que se dispunham a ser vacinadas.

A campanha também foi rejeitada pelas camadas populares por outro motivo: como sua matéria-prima era o líquido extraído de pústulas de vacas doentes, acreditava-se que quem fosse inoculado com a vacina ficaria com feições bovinas.

Os efeitos colaterais potenciais da vacina também incendiavam a imaginação e a revolta da população. Ficou famoso o caso de Leocádia Cypriana, conhecida como Preta Cypriana, que teria morrido de septicemia horas depois de ser vacinada. A manchete do “Correio da Manhã” foi “Morta em consequência da vacina”.

Comunicação ruim, negacionismo e disputa política

A responsabilidade pela revolta deve ser atribuída, em parte, à péssima comunicação do Governo Rodrigues Alves. A população não foi preparada, nem suas dúvidas – muitas delas justificadas – foram respondidas de forma clara e satisfatória. Em meio a opiniões desencontradas, não houve campanha de esclarecimento sobre a importância da vacina, que foi percebida como mais um ataque às liberdades individuais. Este, aliás, era o argumento dos líderes da revolta: o cidadão tinha o direito de decidir se tomaria a vacina, e em nome dessa liberdade valia até a resistência armada.

A condução ruim do governo estimulou o negacionismo. Sem informações suficientes, muitas pessoas questionavam a eficácia da vacina, e havia quem afirmasse que ela seria utilizada para dizimar os pobres. Foi o caso de congressistas como o deputado Barbosa Lima e o senador Lauro Sodré, que advogavam a liberdade individual acima de tudo, mas não só isso: afirmavam que a vacina serviria para contaminar deliberadamente as pessoas, sobretudo as mais pobres.

Vale lembrar que a obrigatoriedade se dava, também, por incentivos e sanções, não somente pela coerção física: o atestado de vacinação passou a ser exigido para matrícula em escolas, casamentos e outras cerimônias, certidões diversas, autorização para viagens etc, com multa para quem não fosse vacinado.

A esse ambiente de incertezas, fake news e insatisfação se somou outro ingrediente explosivo: políticos da oposição aproveitaram o caos para tentar articular um golpe de Estado contra Rodrigues Alves. Os golpistas eram militares, monarquistas, republicanos radicais e lideranças operárias – uma coalizão difícil de parar em pé. O presidente cogitou renunciar e fugir, mas, após um breve confronto nas cercanias do Palácio do Catete, o movimento acabou fracassando, e os insurgentes foram presos e enviados para o Acre.

***

A Revolta da Vacina de 1904 durou uma semana, de 10 a 16 de novembro, quando foi declarado estado de sítio, e a obrigatoriedade da vacina foi suspensa. A lei foi alterada, tornando facultativa a vacinação. O episódio deixou como saldo 30 mortos e mais de 100 feridos, além de 945 prisões e 461 deportações. Menos de quatro anos depois, em 1908, quando o Rio foi atingido por uma nova e violenta epidemia de varíola, a população correu para ser vacinada.

A discórdia que hoje marca os debates em torno da vacina contra a Covid-19 vai durar mais tempo. Tanto quem defende com agressividade quanto quem critica com agressividade a vacinação obrigatória; tanto quem afirma falar em nome da ciência quanto quem afirma defender a liberdade ; tanto quem trata como cretinos aqueles que têm dúvidas legítimas sobre a vacina quanto quem trata como imbecis aqueles que não têm dúvida nenhuma; todos, no fundo, agem pelos motivos errados.

Uns e outros não estão preocupados com a saúde da população, mas com a destruição de seus adversários políticos – e nesse processo a vacina, como tantos outros temas, é apenas mais um pretexto para levar adiante essa guerra de narrativas que já há quase duas décadas envenena e divide os brasileiros.

Ainda não inventaram a vacina contra a intolerância e o radicalismo.

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