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Washington Redskins, tradicional equipe da NFL, a liga de futebol americano dos Estados Unidos, anunciou na segunda-feira a decisão de mudar oficialmente o nome e a logo do time, que fazem referência aos indígenas. A medida foi motivada pelos protestos que acontecem desde o assassinato de George Floyd por um policial em Minneapolis, em maio, e por pressão de grupos como o Black Lives Matter. Entidades de defesa dos nativos americanos consideram o nome da equipe – “Peles-Vermelhas” – uma ofensa de cunho preconceituoso. Patrocinadores como a FedEx Corp, a Pepsi e a Nike também pressionaram a franquia, fundada em 1933, para trocar de nome, ameaçando rescindir contratos de publicidade.

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Também na semana que passou, na Coréia do Sul, a popular banda de k-pop Blackpink, composta só por garotas, lançou no Youtube o aguardado clipe de sua nova música, “How you like that”. Foram mais de 50 milhões de views em poucas horas. Até que alguém reparou que, por alguns segundos, apareciam no clipe imagens de uma estátua de Ganesha, divindade hindu representada por um elefante. Pronto. Isso bastou para começar, entre os fãs indianos da banda, a gritaria identitária contra a apropriação cultural de um símbolo da religião hinduísta. A banda se retratou e cedeu à pressão: o vídeo foi reeditado, eliminando-se digitalmente a aparição de Ganesha.

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A história a seguir é mais antiga: aconteceu no já longínquo ano de 1991, em uma lanchonete de Berkeley, Califórnia. Um cliente entrou, escolheu uma mesa, abriu uma revista e começou a ler um artigo, enquanto aguardava o atendimento. Mas a garçonete, chamada Barbara, se recusou a atendê-lo, porque a revista que ele estava lendo era a “Playboy”. Ela se declarou “chocada e apavorada”, como se a simples visão de uma “Playboy” representasse uma forma de estupro e assédio – e uma ameaça à sua autoestima como mulher.

Barbara e o gerente da lanchonete pediram então que o cliente se retirasse. Sem disposição para discutir (pois só queria comer uma fatia de bolo e tomar um café, enquanto lia um artigo), ele foi embora. Mas a história não acabou aí. Um grupo feminista tomou o episódio como pretexto para divulgar um manifesto afirmando que “a saúde das mulheres é afetada pelo fato de um homem entrar com uma ‘Playboy’ em uma lanchonete”. O manifesto prosseguia: “Isso não tem nada a ver com liberdade de expressão, mas com o poder do homem branco de impor seus padrões a todo mundo, de forma humilhante”.

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Quem contou esse episódio da lanchonete – que pode ser considerado o marco zero da revolução do mimimi atualmente em curso – foi o ensaísta e crítico de arte australiano Robert Hughes (1938-2012), Em um livro profético, hoje pouco lembrado, “Cultura da reclamação – O desgaste americano”, originado de uma série de palestras realizadas na biblioteca pública de Nova York, Hughes foi talvez o primeiro intelectual de peso a criticar os fenômenos do politicamente correto e da vitimização das minorias, dois processos que já então contaminavam a cultura, a mídia e o ambiente acadêmico americanos.

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Hughes sugere que o politicamente correto foi uma reação da esquerda americana à queda do Muro de Berlim e ao colapso dos regimes comunistas: encurralados na universidade, os intelectuais ditos progressistas enxergaram na guerra de narrativas identitárias um salva-vidas milagroso. Começava ali osequestro, pelo campo da esquerda, do multiculturalismo e de bandeiras legitimas de diferentes minorias. Daquele momento em diante era dos progressistas o monopólio da fala sobre esses temas. É isso que torna possível, por exemplo, que o candidato democrata Joe Biden declare, como fez esta semana no programa de rádio “The Breakfast Club”, que os negros que não votarem nele não são negros (“You ain’t black!”) – como se os votos das minorias fossem propriedade privada de um partido, que passa a ter o poder de constranger os eleitores, determinando quem pertence ou não a uma minoria.

A agenda secreta do campo progressista não é a superação de desigualdades e injustiças, e sim a manipulação política dessas bandeiras, colocadas a serviço da divisão da sociedade e de um projeto gramsciano de tomada do poder. Pacientemente implementado ao longo de décadas, esse projeto explora o que Hughes chamou de “essencialismo grupal”, “balcanização azeda” e “separatismo”, isto é, a divisão deliberada da sociedade em tribos com base na etnia, na religião ou na orientação sexual, processo fermentado pelo ódio e pelo ressentimento. Ou seja, quase 30 anos atrás já se prenunciava o sectarismo identitário que hoje provoca tantos estragos.E o maior estrago é o que foi feito na cabeça das pessoas, sobretudo dos jovens.

Subitamente, parece que a razão de viver de toda uma geração passou a ser sabotar e destruir tudo que não se enquadra na sua visão de mundo alucinada. Em nome do combate ao preconceito e às desigualdades, legitimam-se o ódio e a violência. O inimigo é o suspeito de sempre: “as elites”, contra as quais se ergue o grito cada vez mais estridente de todas as minorias, cada uma com a sua bandeira exclusiva e excludente, mas também com algo em comum: todas afirmam lutar pela igualdade, mas todas exigem tratamento diferente para si próprias, o que julgam um direito seu. Exigem ser tratadas não como iguais, mas como especiais. Exigem ser avaliadas não com base no esforço, no talento ou no mérito individual, mas na etnia, no gênero e no lugar de fala. Isso também acontece na esfera da arte, na qual a própria ideia de qualidade foi sacrificada no altar da justiça social: a discriminação estética baseada na qualidade de uma obra de arte é confundida com a discriminação racial ou de gênero.

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Jogar nas elites a culpa por tudo que existe de errado no mundo – e classificar todos os adversários como integrante dessas elites – é uma das mais surradas ferramentas do arsenal demagógico das esquerdas. Mas começa a aparecer um problema aí: como se trata de um termo genérico e sempre relativo, “elite” pode servir para enquadrar qualquer pessoa de renda mediana – inclusive, ironicamente, a massa de inocentes úteis que está aderindo à cultura do cancelamento e defende a censura de livros e filmes do cânone ocidental.

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Essas pessoas não se dão conta de que, amanhã ou depois, serão elas a bola da vez. Você, que se diz de esquerda e ostenta o selo “Somos 70%” (“mas não sabemos fazer conta”) na foto do perfil do Facebook, tome cuidado, porque isso já não te protege de nada: ao menor deslize você será objeto do linchamento moral promovido pelos chacais do politicamente correto. Isso já está acontecendo: na semana passada, foi a vez de um casal de cineastas gaúchos, adeptos do “Somos 70%”, que, por uma palavra mal colocada em uma live, foram massacrados nas redes sociais pela patrulha da falsa virtude.

Pois o primeiro efeito de se dividir a sociedade em tribos raivosas, sempre prontas a mostrar os dentes e a procurar pretextos para exercitar seu “ódio do bem” é o risco permanente de se ofender alguém, ainda mais em um contexto dominado por slogans e frases de efeito, no qual são artigos em falta a interpretação de texto e a capacidade de discernir, graduar e contextualizar as coisas. Hughes já alertava: estamos nos aproximando perigosamente do estado de natureza hobbesiano: uma guerra feroz de todos contra todos, sem regras e valores compartilhados, sem respeito à lei e sem acordos possíveis.

Reforçando os muros entre grupos sociais e culturais, o que as políticas identitárias fazem é negar a possibilidade de convivência harmônica, de uma interface positiva, de uma interação criativa e produtiva entre diferentes: elas não pregam a conciliação nem procuram a solução de conflitos, ao contrário. O objetivo não é uma sociedade na qual haja respeito à diferença, não é um contrato social mais justo e equânime, que reconheça a riqueza da diversidade e no qual todos possam realizar seu potencial, respeitando as mesmas regras e com os mesmos direitos e oportunidades; o objetivo é, rasgando o contrato social, trocar de lugar com os antigos opressores, transformá-los em oprimidos e impor sobre eles suas próprias regras – no grito e pela violência, se preciso for.

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Muito provavelmente, Hughes hoje teria dificuldade para encontrar um editor que ousasse publicar “Cultura da reclamação” – e, se o livro chegasse a ser lançado, seria objeto de escândalo antes de ser queimado na fogueira da nova Inquisição. Pois vivemos em uma época em que pessoas que se dizem tolerantes acham aceitável que escritores e artistas sejam perseguidos por suas opiniões, e que filmes como “...E o vento levou” sejam cancelados. Uma época, em suma, na qual a censura foi reabilitada. Aderimos definitivamente ao “crimideia” orwelliano, e os acusados de crimes de pensamento são diariamente “vaporizados” no tribunal sumário das redes sociais.

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Hughes ousou escrever, por exemplo, algo que é deliberadamente ignorado ou esquecido pela narrativa da dívida histórica de ancestrais: “O comércio do escravo africano como tal, o tráfico negro, foi uma invenção muçulmana, desenvolvida por comerciantes árabes com a entusiástica colaboração de comerciante negros africanos, institucionalizada com a mais implacável brutalidade séculos antes de o homem branco aparecer no continente africano, e continuando muito depois que o mercado de escravos na América do Norte foi afinal esmagado. (...) África, Islã e Europa, todos participaram da escravidão negra, impuseram-na, lucraram com suas misérias. Mas no fim só a Europa e a América do Norte se mostraram capazes de conceber sua abolição; só a imensa força moral e intelectual do Iluminismo, apontada contra a hedionda opressão que representava a escravidão, conseguiu pôr fim ao tráfico”.

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Voltando ao início do texto. Olhando para os capacetes dos Washington Redskins na fotografia é EVIDENTE que não existe ali nenhuma intenção depreciativa, ao contrário: a imagem de um nativo americano poderia perfeitamente ser considerada uma homenagem aos povos indígenas – aliás, era este o discurso dos dirigentes da equipe, até pouco tempo atrás. De forma similar, é EVIDENTE que não há, no clipe da banda de k-pop Blackpink, qualquer intenção de desrespeitar ou profanar a imagem de Ganesha, mas simplesmente de compor o cenário, juntamente com outros elementos que evocam a cultura hindu.

A proposta é apagar da cultura qualquer referência aos nativos que não seja feita por eles próprios, qualquer referência ao hinduísmo que não seja feita pelos próprios hindus? Na real, a quem isso beneficiaria? É um sinal altamente preocupante que os Washington Redskins e a Blackpink tenham cedido à pressão do ódio do bem (e dos patrocinadores, cuja real motivação seria preciso investigar mais profundamente). Quais serão os próximos passos dessa escalada de insanidade?