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Em uma de minhas incursões periódicas por sebos no centro da cidade, me deparei na semana passada com um livrinho do sociólogo italiano Francesco Alberoni que eu não conhecia: “Os invejosos – Uma investigação sobre a inveja na sociedade contemporânea”, publicado originalmente em 1991.
Alberoni analisa diferente tipos de inveja: a inveja competitiva, que leva o invejoso a se esforçar para superar o invejado; a inveja depressiva, que faz o invejoso se sentir impotente, abatido e sem valor; a obsessão invejosa, um tipo de ressentimento que pode se prolongar por uma vida inteira; a inveja má, que faz da destruição do invejado a razão de viver do invejoso; a inveja avarenta, que faz o invejoso querer conservar o seu poder como o avarento a sua riqueza; a inveja iniciática, que faz o invejoso se aprimorar em determinada área na qual o invejado se destaca. Etc.
Não há, portanto, uma inveja única. É um sentimento que pode se manifestar de diferentes maneiras, levando a diferentes comportamentos e resultados – alguns até positivos. Mas, segundo Alberoni, todos os tipos de inveja apresentam características comuns. Duas, principalmente.
A primeira é o reconhecimento, pelo invejoso, de que a inveja é um sentimento vergonhoso, de gente má, infeliz, frustrada e mesquinha; um sentimento que não ousamos confessar a ninguém – e que custamos a admitir até para nós mesmos.
A segunda característica comum é que a inveja, em qualquer de suas manifestações, é condenada socialmente: o invejoso sofre não apenas com o rancor que o corrói por dentro, mas também com a certeza de que, se a sua inveja for exposta, recairá sobre ele um juízo moral que reforçará ainda mais o seu sentimento de inferioridade.
Pelo menos foi assim que sempre funcionou, e era assim que ainda funcionava no começo dos anos 90, quando Alberoni publicou seu livro.
Mas, de lá para cá, a inveja mudou muito. Foi, por assim dizer, ressignificada.
Se você está mal, é por culpa exclusiva do seu vizinho que está bem, ou do grupo que ele representa. Você tem, portanto, o direito de odiar o seu vizinho e desejar que ele morra
Hoje o invejoso não se envergonha mais da inveja que sente, ao contrário: ele a exibe e ostenta, até com certo orgulho. Vai além: une-se a outros invejosos, para que juntos possam causar mais dano ao invejado.
A sociedade, por sua vez, não mais condena a inveja: ela a incentiva, ao pregar que não existem responsabilidades individuais nem meritocracia. Tudo de errado que existe é culpa de um sistema opressor.
Em um mundo onde ninguém é responsável pelo próprio fracasso, se você está mal, é por culpa exclusiva do seu vizinho que está bem, ou do grupo que ele representa. Você tem, portanto, o direito de odiar o seu vizinho e desejar que ele morra.
Alberoni cita o exemplo banal de uma jovem que não suporta lidar com a beleza da amiga de infância, que a faz se sentir inferior. Vendo a filha sofrer, a mãe da invejosa pergunta: “Se ela é mais bonita, por que você se sente mal com isso? Você não permaneceu a mesma que era? Sua amiga não te privou de nada, não te causou nenhum dano, não tem culpa nenhuma... Por que você lhe quer mal?”
Essa pergunta só fazia sentido em um ambiente no qual fazia parte do senso comum aceitar que o outro sempre será superior a mim em algum aspecto da vida: sempre haverá alguém mais bonito, mais inteligente, mais competente e/ou mais bem-sucedido que eu.
Por que eu deveria desejar o mal a quem é melhor que eu, se continuo sendo o mesmo? Sendo inevitável o convívio com pessoas mais bonitas, mais ricas, mais inteligentes ou mais competentes, a inveja só servirá para envenenar minha existência. Devo, portanto, me envergonhar de ter inveja.
Hoje, a mensagem disseminada é completamente diferente: aquele que causa inveja é que deve sentir vergonha e culpa por ser quem é e ter o que tem, porque ele é agente de um sistema opressor. Quem é condenado pela sociedade não é mais o invejoso, mas o invejado.
O belo deve pedir desculpas ao feio pela sua beleza. O magro deve pedir desculpas ao gordo pela sua magreza. O inteligente deve pedir desculpas ao ignorante pela sua inteligência.
O assassino se torna mais vítima a cada facada que dá. O terrorista se torna mais inocente a cada cabeça que corta: torna-se vítima, e não culpado, do massacre que perpetra
Pior: o incentivo ao rancor e ao ressentimento legitima até mesmo o desejo de destruir e exterminar aqueles que invejamos, na retórica do opressor/oprimido que hoje prevalece.
Mas não é só isso. Essa legitimação da inveja, do rancor e do ressentimento faz, por exemplo, justiceiros sociais acreditarem, de forma ingênua ou cínica, que a maneira correta de acabar com a desigualdade não é acabar com a miséria, mas com a riqueza.
Daí um autor sugerir, sem qualquer cerimônia, que a solução para os problemas do país seria eliminar os 10% mais ricos, já que assim teríamos uma sociedade mais igualitária – tema do meu artigo “Sobre riqueza, pobreza e desigualdade”.
Dois autores são fundamentais para se entender esse fenômeno.
No romance “A revolta de Atlas”, a pensadora americana (de origem judaico-russa) Ayn Rand descreve uma sociedade na qual, inicialmente, pessoas talentosas e produtivas usufruem o fruto do seu trabalho. Com o tempo esses personagens se veem perseguidos por grupos de indivíduos corruptos e sem talento, que conquistam o poder para viver à custa do trabalho alheio, usando como justificativa o discurso do altruísmo e da justiça social.
Em um determinado momento, os personagens empreendedores e trabalhadores se revoltam, largam suas empresas e fogem para uma ilha, deixando atrás de si um país mergulhado na pobreza e no caos. Ayn Rand conclui: "A coisa mais imoral na Terra é ofender alguém não por suas falhas, mas por suas virtudes".
Por sua vez, Theodore Dalrymple investigou como o ressentimento se tornou estruturante do espírito da nossa época: “A exibição de vícios tornou-se a prova de maus tratos; o que se considerava defeito moral se tornou condição de vítima. O criminoso que, de posse de uma faca, rouba e mata torna-se cada vez mais vítima a cada facada que dá”. Como se a faca agisse por vontade própria – e fosse mera ferramenta de uma justificada revolta contra um sistema opressivo.
Por analogia, o terrorista se torna mais inocente a cada cabeça que corta, tornando-se vítima, e não culpado, do massacre que perpetra.
Invejosos de todo o mundo, uni-vos. Está em pleno curso a revolução dos ressentidos – e vocês estão vencendo.