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Cumprindo a promessa, segue a conclusão do meu artigo sobre a versão brasileira contemporânea do Homo Sovieticus, personagem descrito pelo dissidente Aleksandr Zinoviev em um livrinho publicado no ano de 1982.
À medida que os anos vão passando, tanto o Homo Brasiliensis, na pujante democracia relativa atual, quanto o Homo Sovieticus, na decadente ditadura comunista de outrora, se acostumam com a mediocridade sistêmica.
A atitude que prevalece é a de resignação. Diante de notícias e situações absurdas que se renovam em ritmo diário, as pessoas comuns preferem se acomodar e deixar para lá. O conformismo aumenta, e a capacidade de indignação vai sendo, aos poucos, anestesiada.
Isso vale, certamente, para as arbitrariedades cometidas sem qualquer pudor por autoridades – e tratadas pela grande mídia com naturalidade e silêncio obsequioso, ou mesmo com aberta aprovação. “Se aqueles que têm o dever e o poder de reagir se calam, quem sou eu na fila do pão?”, pergunta o cidadão comum.
Mas vale também para problemas estruturais, que desde sempre nos afetam: como seu primo soviético, o Homo Brasiliensis se habituou ao fato de que as filas, a burocracia e os serviços públicos precários, bem como a corrupção e a violência endêmicas, fazem parte da realidade do país. Simples assim.
Por acreditar que certos problemas são inevitáveis, ou mesmo “culturais", o indivíduo desenvolve um sentimento de fatalismo e desesperança em relação ao futuro. Sem qualquer motivação para tentar transformar a realidade à sua volta (aliás, veja o que aconteceu com aqueles que tentaram), ele adere à passividade como mecanismo de defesa, como forma de sobreviver a um sistema impiedoso e indiferente.
Zinoviev também descreve como o sistema coletivista na União Soviética incentivava o cinismo e a desonestidade. Nos kolkhozes, por exemplo, já que todos os bens eram coletivos, já que tudo pertencia a todos, muitas pessoas se sentiam no direito de cometer pequenos furtos. Só para tomar uma "vodcazinha", talvez.
Mais grave: como o Homo Sovieticus, o Homo Brasiliensis desenvolveu um senso de desconfiança em relação ao outro. Em uma sociedade na qual ter uma opinião inconveniente sobre determinados temas pode levar à prisão, todas as pessoas estranhas são percebidas como alcaguetes em potencial.
Essa atitude era deliberadamente fomentada pelo regime, para enfraquecer a solidariedade entre os cidadãos. Zinoviev analisa como a ditadura comunista não se contentava apenas em dominar a esfera pública: ela também queria controlar os pensamentos e emoções mais pessoais, criando uma atmosfera de suspeita e traição, incitando o medo e a vigilância constantes.
O impacto nas relações interpessoais e no próprio senso de identidade era imenso, o que deteriorava ainda mais a coesão social. Como estratégia de sobrevivência, as pessoas se sentiam obrigadas a ocultar o que sentiam e pensavam, mesmo dentro de casa.
O desgaste gradual da confiança mútua entre as pessoas criou uma “cultura da suspeita”, na qual vizinhos e até parentes podiam ser potenciais delatores. Isso não é algo estranho na nossa democracia relativa, como abordei no artigo “Você tem medo de dizer o que pensa?” Essa situação é ainda mais exacerbada quando as próprias instituições oficiais pressionam os indivíduos a se alinhar a determinadas ideologias.
A relação de dependência paternalista entre o cidadão e o Estado não é só material, é também psicológica. Isso gera uma dinâmica perversa, na qual cada vez mais brasileiros dependem de programas e benefícios estatais
Zinoviev demonstra como essa percepção de vigilância constante do Estado levava à autocensura e ao monitoramento das próprias palavras. O controle não era apenas vertical, de cima para baixo; as pessoas comuns se vigiavam mutuamente e internalizavam a censura.
Outro paralelo inevitável: como o Homo Sovieticus, o Homo Brasiliensis se acostumou a depender do Estado para tudo. O sistema criou uma mentalidade paternalista: sem iniciativa, descrente na própria capacidade e nos próprios méritos, sem incentivo para se esforçar e com medo da autonomia, o indivíduo espera que o Estado o sustente e resolva todos os seus problemas.
Como o suporte do Estado será sempre e inevitavelmente limitado e precário, o cidadão comum, especialmente em comunidades de baixa renda, se vê obrigado a construir redes de apoio informais para sobreviver. Basta visitar qualquer favela brasileira para perceber como essas redes são constituídas, na melhor das hipóteses, pela Igreja; na pior (e com mais frequência), pelas milícias e pelo tráfico.
Mas a relação de dependência paternalista entre o cidadão e o Estado não é só material, é também psicológica. Como o Estado controla todos os aspectos da vida, o indivíduo não desenvolve habilidades para buscar soluções fora do sistema. Isso gera uma dinâmica perversa, na qual cada vez mais brasileiros dependem fortemente de programas e benefícios estatais. Esse vínculo cria a expectativa de que o governo é o único responsável pelo bem-estar social.
Além disso, como o Homo Sovieticus, o Homo Brasiliensis se vê forçado a aderir à informalidade. Com oportunidades limitadas de emprego formal e uma economia instável, ele se adapta rapidamente ao trabalho informal e a formas alternativas de sustento, que levam a uma situação de permanente precariedade e insegurança financeira.
Mas o efeito mais nocivo da ditadura soviética no homem comum era mesmo a total supressão da ambição individual. Zinoviev descreve como o sistema inibia e desencorajava a iniciativa e a busca por excelência, que eram percebidas como uma ameaça ao coletivo.
Como se destacar podia atrair suspeitas e problemas, o Homo Sovieticus adotava um mindset de mediocridade, pois qualquer esforço adicional seria não apenas inútil, já não seria recompensado de forma justa: poderia até ser penalizado. Era a valorização da mediocridade.
Por fim, como o Homo Sovieticus, o Homo Brasiliensis também usa o humor autodepreciativo como válvula de escape emocional para a frustração: piadas (e, no nosso caso, memes nas redes sociais) são uma forma de processar e lidar com a ansiedade e o medo.
Em sociedades marcadas pela supressão das liberdades individuais, usa-se o humor como uma forma de consolação. Mas vale lembrar que mesmo piadas podem ser perigosas, dependendo da sensibilidade da autoridade afetada. Basta citar o caso do... Deixa para lá.
Zinoviev conclui sugerindo que o legado do Homo Sovieticus não seria facilmente apagado, mesmo com o eventual colapso do comunismo, que aconteceria poucos anos depois. Porque todas essas características se tornaram intrínsecas à cultura e à identidade da população. Isso ajuda a entender o prolongado êxito do governo Putin, na Rússia contemporânea.
Também no Brasil, é visível que muitos cidadãos se tornaram céticos em relação à política, à Justiça e até mesmo à democracia, tal como ela se apresenta. As reações hoje possíveis são a resignação e o conformismo. Mas, a longo prazo, os custos psicológicos e emocionais da relativização de direitos, da supressão de liberdades e da crescente repressão estatal serão imensos para a sociedade brasileira. Causas costumam ter consequências, e as consequências vêm depois.
Conteúdo editado por: Aline Menezes