Escrito pelo historiador britânico Niall Ferguson, o ensaio "Somos todos soviéticos agora" aponta e investiga semelhanças surpreendentes entre a sociedade ocidental contemporânea e a antiga União Soviética. É um texto fundamental para a reflexão sobre a liberdade de expressão, o papel do Estado e as lições esquecidas da História.
Premiado autor de livros como “Império”, “A praça e a torre”, “Catástrofe” e “O horror da guerra”, Ferguson identifica sinais alarmantes de que, 35 anos após a queda do Muro de Berlim, diversas práticas e valores associados ao comunismo soviético estão cada vez mais presentes no modo como vivemos hoje no Ocidente, em diversos aspectos.
Ferguson argumenta que o modelo soviético de gestão da sociedade era caracterizado por uma burocracia sufocante, pelo controle absoluto da informação e por uma agenda ideológica que priorizava o coletivo às custas do indivíduo. Ainda que de forma sutil e fragmentada, todas essas características estão ressurgindo nas democracias ocidentais.
O primeiro aspecto a destacar nesse processo de sovietização é a cultura da censura e da vigilância. O monitoramento digital permanente por parte dos governos e das Big Techs criam a percepção de uma atmosfera de vigilância que não fica devendo nada à da época da KGB.
Toda e qualquer manifestação nas redes é hoje observada e armazenada de maneira a controlar dados pessoais em uma escala que seria inimaginável poucas décadas atrás. E, o que é mais grave, a tecnologia proporciona aos governos e às Big Techs o poder de controle absoluto das narrativas, por meio de diferentes mecanismos.
A perseguição aberta ou velada a quem emite opiniões, por assim dizer, inconvenientes já é perfeitamente comparável aos limites impostos à liberdade de expressão nas ditaduras comunistas. É claro que isso também decorre da politização das instituições, do uso dos aparelhos do Estado para promover agendas ideológicas, o comprometendo a sua necessária imparcialidade.
O mundo parece estar esquecendo as lições da Guerra Fria e do colapso do comunismo soviético
O segundo aspecto é o aumento do Estado, com a crescente planificação da economia. O poder dos governos na gestão das economias nacionais, que já vinha crescendo de forma consistente, teve um forte empurrão com a pandemia.
A intervenção estatal nos mercados, os subsídios e outras formas de dirigismo financeiro, bem como a dependência cada vez maior de empresários da boa vontade dos governos também aproximam as democracias, segundo Ferguson, das práticas soviéticas de planejamento centralizado e controle das atividades econômicas.
Terceiro, a disseminação de um pensamento hegemônico coercitivo, que acaba levando a sociedade à apatia e ao conformismo. Ferguson critica a imposição de agendas como o “wokismo” e o "politicamente correto", que lembram a doutrinação ideológica promovida em todas as ditaduras comunistas. Essa nova ortodoxia cultural silencia vozes discordantes e produz o medo de expressar opiniões contrárias, afirma o autor.
Ferguson ressalta que o mundo parece estar esquecendo as lições da Guerra Fria e do colapso do comunismo soviético. Em vez de defender as liberdades individuais e o dinamismo dos mercados, a maioria dos governantes prega hoje maiores regulamentações e controles, sufocando a inovação, e mal disfarçados mecanismos de censura, que suprimem direitos e liberdades individuais fundamentais.
Ou seja, o Ocidente está aderindo a valores e práticas diametralmente opostos aos que o fizeram vencer a Guerra Fria. Nesse contexto, alerta Ferguson, é fundamental resistir à tentação de um "neossocialismo", que levará inevitavelmente ao declínio econômico e à supressão da liberdade.
Uma palestra de Niall Ferguson sobre o tema da sovietização do Ocidente está disponível no Youtube:
Desnecessário dizer, o ensaio “Somos todos soviéticos agora” reverbera particularmente no Brasil, que passa hoje por graves desafios políticos, econômicos e culturais relacionados à liberdade de expressão e ao papel do Estado.
O necessário debate sobre “fake news”, “desinformação” e os limites da liberdade de expressão não está sendo conduzido de forma democrática, no Congresso Nacional, pelos representantes eleitos pelo povo; é um debate confinado aos limites do entendimento e à vontade dos 11 ministros do STF.
A controversa regulação das redes sociais que se anuncia tende a reforçar ainda mais a cultura da vigilância e do medo apontadas por Ferguson em seu ensaio. Opiniões e discursos “problemáticos” serão cada vez mais rastreados e reprimidos.
Por sua vez, a intervenção estatal na economia só faz crescer. A pressão endógena por aumento de gastos (e impostos) vira uma bola de neve, que leva inevitavelmente ao descontrole e à irresponsabilidade fiscal. Muitas empresas estatais que tinham voltado a dar lucro em anos recentes voltaram a operar no vermelho. Como nas ditaduras comunistas, o aumento da burocracia leva à ineficiência econômica.
A adesão a narrativas culturais e identitárias rígidas também é um reflexo, no caso brasileiro, do "conformismo ideológico" que Ferguson analisa em seu ensaio. Debates livres sobre diversos temas “sensíveis”, como ideologia de gênero, segurança das urnas e mudanças climáticas, são simplesmente interditados.
Quem ousa pensar de forma diferente já corre o risco de ser implacavelmente perseguido e simbolicamente esfolado. Isso, por sua vez, leva à autocensura, à chamada “espiral do silêncio”. O conformismo e a autocensura se tornaram ferramentas poderosas de controle nos regimes comunistas do Leste Europeu. O mesmo pode já estar acontecendo no Ocidente - e no Brasil, particularmente.
Cada vez mais brasileiros, especialmente se tiverem algum grau de exposição pública, estão deixando de expressar opiniões contrárias à narrativa dominante por medo de retaliações. Nesse contexto, parece fundamental lutar para que o debate público volte a ser livre, e para que o Estado não se torne um agente de censura.
As teses de Ferguson não são exatamente novas. Elas ecoam preocupações de autores tão diferentes como Friedrich Hayek, Alain Besançon e Václav Havel, que em diferentes contextos alertaram para os perigos da centralização do poder, do controle ideológico da sociedade e da repressão burocrática das liberdades.
Hayek investigou as bases econômicas e políticas dos riscos da centralização do poder; Besançon destacou a influência cultural e ideológica soviética nas elites intelectuais do Ocidente, seduzidas pela narrativa soviética de igualdade; e Havel analisou como esses processos se manifestam no comportamento dos indivíduos na sociedade.
Os três alertaram que mesmo democracias liberais podem se desviar para o autoritarismo se adotarem economias planificadas e burocracias excessivas, ao relativizar as liberdades individuais e promover o coletivismo coercitivo.
Havel, particularmente, afirmou que a sovietização das democracias não se limita às estruturas formais de poder, mas permeia todas as relações sociais e culturais, reduzindo cada vez mais o espaço para a dissidência e a liberdade de expressão.
Mais do que um alerta, essas ideias servem como um convite à reflexão e à necessidade de proteger as instituições democráticas e os valores da liberdade individual frente às pressões do coletivismo e da centralização.
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