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Há duas formas de pensar a política, que são extensões de duas formas de enxergar o mundo: uma visão positiva e uma visão normativa.
A visão positiva registra e analisa os fatos como eles são; a visão normativa julga os fatos a partir de uma convicção sobre como eles deveriam ser. Isto é, subordina a realidade ao filtro de um determinado conjunto de crenças e valores.
Ou ao filtro da paixão. E, como escreveu Nelson Rodrigues, não há “nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”.
Os conceitos de visão normativa e positiva têm origem na teoria econômica: enquanto a economia positiva tenta descrever a realidade com base em evidências empíricas, a economia normativa faz recomendações com base em critérios subjetivos de valor.
Por exemplo, diante da proposta de se criar ou aumentar um imposto qualquer, o economista positivo investiga quais serão o impacto e as consequências da medida com base em cálculos e indicadores concretos.
Já o economista normativo defende a criação ou aumento do imposto com base na crença de que o Estado precisa arrecadar mais para exercer sua função redistributiva e diminuir a desigualdade social.
Outro exemplo: diante da proposta de se dobrar o valor do salário mínimo, o economista positivo se preocupa em examinar o impacto da medida na inflação e no desemprego – e, provavelmente, conclui que os efeitos serão negativos.
Já o economista normativo enfatiza o argumento de que o reajuste proporcionará um padrão de vida melhor para o trabalhador, contribuindo assim para a justiça social.
Em outras palavras: o economista positivo se preocupa com aquilo que acontece de fato na economia, enquanto o economista normativo faz julgamentos e foca no que ele acha que deveria acontecer.
Geralmente, o tempo mostra que era o primeiro que estava certo. As propostas do segundo vêm embaladas nas melhores intenções, mas nem sempre têm amarras na realidade.
Na melhor das hipóteses, o economista normativo acredita que a economia é regida por escolha morais. Não é. Como escreveu Adam Smith há mais de dois séculos: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses”. Ignorar isso é ignorar a natureza humana.
Pensar com o fígado não vai mudar a política brasileira. Aliás, tudo que seu adversário quer neste momento é que você pense com seu fígado
Na política acontece uma divisão parecida entre positivos e normativos, e o fato é que a maioria das pessoas, imbecilizadas ou não, pensa, fala e age movida por uma atitude normativa.
Já há algum tempo, sempre que testemunho alguma conversa sobre política – ou sempre que participo de alguma, coisa que evito fazer ao máximo – tento ficar atento para o efeito das paixões sobre as palavras.
Não canso de me surpreender: a paixão pode levar alguém aparentemente na posse de suas faculdades mentais a afirmar, com a mais sincera convicção, que o branco é preto, e que dois mais dois são cinco. E ai de quem discordar, mesmo que seja um parente ou um amigo de longa data.
Como nada de bom pode vir de conversas assim, prefiro não participar. Citando mais uma vez Nelson Rodrigues: “A maior desgraça da democracia é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas, que são a maioria da humanidade”.
Já quando escrevo sobre política, procuro fazer uma análise desapaixonada do que vejo, mas não apenas isso: procuro ter uma atitude positiva, isto é, entender a realidade da política como ela é, não como eu acho que deveria ser.
Isso passa pelo reconhecimento de que existem pessoas – milhões de pessoas – que pensam de forma diferente da minha e têm esse direito. Reduzir a diferença de pensamento a uma aptidão para o fascismo ou para a corrupção apenas contribui para reforçar o clima de "nós contra eles" que envenena a sociedade brasileira – clima que hoje, aliás, favorece o governo eleito.
A não ser que uma improvável guerra de secessão divida o território brasileiro em dois, a convivência entre as duas partes será inevitável. Nesse cenário, até para preservar a saúde mental e alguma paz de espírito, convém enxergar a vida como ela é , sem brigar com os fatos nem ficar remoendo ressentimentos.
Especialmente no Brasil, não dá para reduzir a política a uma luta entre o bem e o mal: negociações aviltantes e agendas secretas fazem parte do jogo, o tempo inteiro.
Nenhuma narrativa é cem por cento verdadeira, porque narrativas não são decalques da realidade: em algum grau, são ficções mais ou menos verossímeis e necessariamente parciais; todas contêm distorções e omissões, deliberadas ou inconscientes, motivadas pela inocência em alguns casos, pelo cinismo em outros, geralmente pela paixão, que é sempre má conselheira.
Entender quando é hora de aguardar e recompor forças não significa abrir mão dos próprios princípios e convicções; significa pensar estrategicamente e sobreviver em um ambiente de polarização radical, de desordem institucional e de expectativas sombrias na economia.
Até porque a alternativa a pensar estrategicamente é não se conformar, é ficar dando murros em ponta de faca, ou cabeçadas na parede. Convém evitar cair nessa armadilha, porque o desespero jamais levou à vitória. Além disso, como escrevi recentemente no artigo “A pacificação do país parece distante”, quem aposta no tudo ou nada geralmente fica sem nada.
Pensar e agir com o fígado não vai mudar a política brasileira. Aliás, tudo que seu adversário quer neste momento é que você pense e aja com seu fígado.