Há pouco mais de duas semanas foi noticiado o adiamento da visita ao Brasil da Relatora Especial da ONU sobre Violência contra Mulheres e Meninas, Reem Alsalem. Pesquisando sobre o tema, constatei que esse adiamento se dá no contexto de uma polêmica recente que envolveu a Relatora. Em maio passado, ela foi acusada de transfobia e objeto de uma tentativa de cancelamento por parte da AWID – Association for Women’s Rights in Development.
Em 18 de maio a AWID publicou uma carta aberta contra Reem, com o título “Não há lugar para agendas anti-trans na ONU”, assinada por 551 entidades e organizações.
Reem respondeu quatro dias depois, com uma declaração que começa assim:
“Estou profundamente preocupada com a escalada de intimidação e ameaças contra mulheres e meninas por expressarem as suas opiniões e crenças relativamente às suas necessidades e direitos com base no seu sexo e/ou orientação sexual. O desacordo com as opiniões das mulheres/meninas, inclusive por parte de políticos, acadêmicos e defensores dos direitos das mulheres, nunca deve ser usado como motivo para justificar a violência e a intimidação.”
O episódio expõe o grau a que chegaram dois fenômenos típicos do nosso tempo: primeiro, a prática do cancelamento orquestrado, da ação coordenada de grupos de interesse que se unem para constranger qualquer pessoa ou instituição que ouse discordar minimamente das suas agendas. A cultura do cancelamento se sofisticou a ponto de sabotar o trabalho de uma Relatora Especial da ONU.
O segundo fenômeno é a sinalização de um descontrole crescente dentro desse próprio exército de canceladores, que agora se volta até mesmo contra a ONU – que, via de regra, vem se mostrando bastante alinhada com a agenda progressista, em diferentes frentes.
Nesta entrevista exclusiva, a Relatora Especial da ONU fala sobre o seu trabalho no combate à violência contra mulheres e meninas, sobre sua adiada visita ao Brasil e sobre o debate a respeito da alienação parental. Agradeço a Clarice Saadi por intermediar o contato com Reem Alsalem.
- Você foi nomeada Relatora Especial da ONU em julho de 2021, para um mandato de três anos. Que avaliação você faz seu trabalho até agora?
REEM ALSALEM: Já estou nesta posição há pouco mais de dois anos. Tem sido intenso, pois é um mandato global que está seriamente subfinanciado: eu só conto com o apoio de dois funcionários do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU. A violência contra mulheres e meninas continua em um nível epidêmico.
Mas também tem sido um trabalho muito gratificante. Tentei me concentrar em amplificar as vozes das sobreviventes da violência, das mulheres e das defensoras dos direitos humanos, apoiando agentes estatais e não-estatais em seu esforços de prevenção e respostas à violência, mas sempre lembrando a eles todas as suas obrigações internacionais.
Também tenho monitorizado atentamente o que costumo chamar de “as novas fronteiras” da violência contra mulheres e meninas, ou seja, como o patriarcado e a misoginia estão evoluindo e se manifestando de maneiras que talvez ainda não compreendemos, ou que nunca testemunhamos antes. Em nenhum lugar isso é mais evidente que a violência exercida por meio das tecnologias digitais, e por causa delas.
As novas dinâmicas emergentes impactam de forma diferente as mulheres e as meninas, a exemplo das alterações climáticas. Tento contribuir para o diálogo e entendimento, além de chamar a atenção para os riscos e o impacto negativo dessas dinâmicas.
Termino meu primeiro mandato em junho de 2024, mas pretendo ser reconduzida. Relatores que me antecederam sempre me disseram que o tempo passa depressa, e que três anos não são suficientes para realizar tudo o que se tem em mente. Agora entendo o que eles queriam dizer com isso.
- Você tinha viagem marcada ao Brasil em maio de 2022, que acabou sendo adiada. A viagem foi remarcada para agosto de 2023 e foi novamente adiada. Por que ocorreram os dois adiamentos? Você ainda virá ao Brasil?
REEM: Poucos dias antes da minha primeira visita, foram feitas mudanças na gestão da missão e no apoio que eu receberia. Senti, portanto, que as condições já não eram propícias para que esta missão se desenvolvesse como deveria. Informei o governo brasileiro, enfatizando que continuava comprometida com a visita, e propus uma nova data para 2023, que foi aceita.
Após o adiamento da missão pela segunda vez, contactei imediatamente o missão permanente do Brasil em Genebra para definir outra data. Ofereci inúmeras opções para o restante do ano. O governo brasileiro propôs recentemente que a visita ocorresse em setembro de 2024 – somente daqui a 11 meses, portanto. Tenciono aceitar esta proposta, embora não a considere ideal, pois gostaria que a visita acontecesse mais cedo.
Só podemos realizar duas visitas oficiais a cada país por ano. Em qualquer visita, uma parte da agenda é definida pelo governo local e outra eu organizo separadamente. A parte da agenda coordenada pelo governo geralmente é centrada em reuniões com diferentes instituições e programas governamentais que visem a prevenção e a resposta à violência contra as mulheres. A outra metade da agenda é dedicada a reuniões com vítimas, representantes da sociedade civil e agentes da ONU. Essa parte é formulada diretamente pela minha equipe e não é compartilhada com o governo.
A violência continua em um nível epidêmico: pelo menos uma em cada três mulheres sofre violência física e/ou sexual em algum momento da sua vida
- Que dados você tem sobre a situação e a evolução da violência contra mulheres e meninas no Brasil?
REEM: Como em muitos países, a violência contra mulheres e meninas no Brasil acontece em bases diferentes que se cruzam. Elas podem ser vítimas de violência por serem mulheres ou meninas, mas muito provavelmente também por causa de outros aspectos da sua identidade.
A violência se manifesta em todas as esferas da vida, privada ou pública. Algumas causas são estruturais e profundas, associadas a décadas de marginalização, subjugação e exclusão. A violência pode ser cometida por atores estatais e não estatais. Portanto, é uma teia complexa.
Meus colegas, outros relatores e grupos de trabalho que se reportam ao Conselho de Direitos Humanos, já nos envolvemos com o Brasil há muitos anos. Nós nos baseamos em informações que obtemos diretamente das vítimas ou de pessoas que trabalham com elas por meio de diferentes mecanismos regionais, nacionais e internacionais.
Sei que o Brasil tem um ambiente muito vibrante e de organização da sociedade civil, o que contribuiu fortemente para o avanço da defesa dos direitos as mulheres. Existe uma riqueza de dados, e as próprias visitas de relatores servem como uma fonte útil de informação.
Não posso falar muito sobre a evolução da violência, porque um dos objetivos da visita ao Brasil será justamente avaliar isso, estabelecendo prioridades, oportunidades e desafios. Então me faça essa pergunta novamente, depois que a minha visita ao Brasil acontecer.
Dito isto, sinto-me encorajada pelo sentido renovado de compromisso político com a questão da igualdade de gênero no Brasil. A questão mais importante é a decisão política de priorizar a questão e dedicar recursos a ela. Todo o resto decorre daí.
- De forma geral, a violência baseada em gênero está crescendo no mundo? A quê você atribui isso? Que políticas, em que países, foram mais eficazes no combate à violência contra mulheres e meninas?
REEM: É uma boa pergunta. Tenho pensado bastante sobre isso, recentemente. Será que a violência contra as mulheres aumentou ou será que nós nos tornamos mais conscientes dela porque temos meios mais eficazes e rápidos de partilhar informação e porque melhoramos a qualidade dos dados que recolhemos?
Eu acho que é um pouco dos dois. Mas a realidade é que a violência continua em um nível epidêmico no mundo: pelo menos uma em cada três mulheres sofre violência física e/ou sexual por parceiro íntimo ou violência sexual por não-parceiro em algum momento da sua vida.
Não estamos sequer contabilizando a violência econômica, psicológica ou outras formas de violência física. E também temos que considerar que os incidentes de violência contra mulheres são extremamente subnotificados.
Mas está claro que uma série de mega-crises exacerbou a violência contra as mulheres. Sabemos, por exemplo, que a pandemia de Covid aumentou a violência doméstica em todo o mundo, mas também tiveram impacto a crise climática e a multiplicação de conflitos humanitários.
Não posso identificar qualquer política específica, mas aprendemos ao longo de décadas o que funciona e o que não funciona: uma abordagem da questão de direitos humanos que envolva toda a sociedade, políticas sensíveis ao gênero (em vez de neutras em termos de gênero), a coleta e uso de dados desagregados para compreender os fatores envolvidos na violência contra mulheres e formulação de políticas públicas adequadas.
Também é preciso acabar com a impunidade dos crimes de violência e garantir à vítimas reparações significativas, que nem sempre têm que ser financeiras, ou apenas financeiras.
Tem sido difícil ter conversas construtivas sem ser cancelada, atacada, difamada. Muitas mulheres que tinham opiniões críticas sobre a ideologia de gênero perderam seus empregos e foram seriamente ameaçadas, envergonhadas e humilhadas
- Nos últimos anos, os conflitos entre feministas e o movimento transgênero aumentaram. Por que isso está acontecendo?
REEM: Você deve perguntar àquelas pessoas que estão muito mais próximos desse debate do que eu, para entender qual é a perspectiva deles, pois há muitos pontos de vista diferentes. Primeiro, há aqueles que argumentam que os defensores dos direitos dos transgêneros fazem parte do movimento feminista.
Outros dirão que o movimento feminista em si não é uniforme, pois tem muitas correntes diferentes, com divergência de opiniões sobre diversos temas, incluindo a prostituição, o aborto e questões de gênero, identidade e sexualidade, bem como os direitos que delas emanam.
Tem sido difícil – e, em alguns lugares, quase impossível – ter conversas construtivas, calmas e inclusivas sobre estas questões, sem ser cancelada, atacada, sabotada, difamada. Em muitos casos, mulheres – especialmente mulheres que tinham opiniões críticas sobre a ideologia de gênero – perderam os seus empregos e foram seriamente ameaçadas, envergonhadas e humilhadas.
- Você mesma foi acusada de transfobia por suas opiniões sobre esse tema. Como essas acusações impactaram seu trabalho na ONU?
REEM: Eu diria que fui acusada de transfobia por um grupo pequeno de organizações e indivíduos, mas que dispõe de muitos recursos e exerce muita influência além-fronteiras.
Mas também recebi o apoio de muitas organizações e indivíduos que entendem que essas acusações são infundadas. Especialmente quando se analisam as minhas posições e declarações, fica claro que sempre defendi a proteção, o respeito e a segurança de todas as mulheres e meninas.
Aqueles que me apoiam compreenderam que tenho opinado sobre questões muito específicas, nas quais existem tensões entre os direitos baseados no sexo e os direitos que podem emanar da identidade de gênero de alguém.
É nosso dever como sociedade resolver estas tensões, que podem surgir e surgem com bastante frequência. Por exemplo, também existe uma tensão sobre o direito de se expressar livremente, pois se argumenta que esse direito não inclui a incitação ao ódio ou à violência através do discurso.
O que está claro para mim é que nem aqueles que apreciam a minha posição nem aqueles que a criticam falam por toda a comunidade LGBTI, pelas feministas ou pelas mulheres, pois são movimentos muito diversificados.
Devo acrescentar que os ataques não partiram apenas dos defensores da identidade de gênero. Alguns também vieram dos grupos de interesse envolvendo o tema da alienação parental, que não ficaram satisfeitos com as conclusões e recomendações de um relatório que apresentei recentemente na ONU.
As acusações e ataques por desses diferentes grupos de interesse criaram desconforto para o meu trabalho. Organizações Não-Governamentais, centros acadêmicos, organizações internacionais e regionais, bem como alguns governos, foram pressionados a deixar de interagir comigo e a não me convidar para eventos, reuniões ou visitas. Em alguns casos, essa pressão teve sucesso, em outros não.
Embora acolha com agrado as críticas e não espere que todos concordem com as minhas conclusões, é preocupante quando a intimidação e a desinformação são utilizadas para sufocar o debate e para atacar a integridade de um especialista e a sua reputação de uma forma tão implacável e infundada. Isso me levou a emitir declarações para esclarecer minhas posições e soar o alarme em relação a esses ataques por escrito em duas ocasiões, que também compartilhei com os membros do Conselho de Direitos Humanos.
- Você tem participado do debate sobre alienação parental no Brasil e em todo o mundo. Quais são suas recomendações sobre este tema?
REEM: O Brasil foi um dos primeiros países em que me engajei no que diz respeito à alienação parental. Isso me ajudou a compreender as consequências, em termos de direitos humanos, para pais e filhos, incluindo as mulheres, que são motivo de preocupação durante o meu mandato.
Ouvi diretamente depoimentos de mães que foram falsamente acusadas de alienação parental. Inicialmente fiquei surpresa pela forma como a alienação parental estava sendo instrumentalizada com sucesso por um dos progenitores para desviar a atenção de outras dinâmicas problemáticas, como o fato de esse progenitor ter sido responsável por atos de violência doméstica e/ou abuso sexual contra o outro progenitor e/ou seus filhos.
O que fica claro a partir dos dados e testemunhos das vítimas é que a maioria das acusadas são mulheres, com consequências devastadoras, que incluem a perda da custódia, ou juízes ignorando depoimentos fundamentados sobre violência doméstica ou sexual contra elas ou os filhos.
Eu fiz várias recomendações aos Estados e outros agentes sobre como lidar com essa questão, no relatório que apresentei, em junho deste ano, ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Como afirmei no meu discurso ao Conselho, quando apresentei o relatório, há muitas ações que os Estados podem tomar para reverter os danos duradouros causados aos indivíduos, às famílias e às sociedades, melhorando o acesso das mulheres e crianças à Justiça, melhorando a coleta de dados relevantes e rejeitando a revisão da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças para lidar com casos de mulheres e crianças que fogem de situações abusivas em contexto de disputas pela guarda dos filhos, para sua segurança. Muitas recomendações, senão todas, se aplicam ao Brasil.
Estas são, obviamente, apenas recomendações, que esperamos que os Estados considerem úteis ao abordar o problema de direitos humanos. Não são obrigados a fazê-lo, mas é claro que é uma oportunidade de trabalharem para acabar com a violência contra mulheres e meninas, com base na análise e na opinião de uma especialista. É claro que essas recomendações precisam ser contextualizadas e adaptadas, para que governos e outros agentes possam usá-las como um roteiro.
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