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Já virou rotina, o que não quer dizer que seja algo normal. Durante a cerimônia de premiação dos BRIT Awards, em Londres, na última terça-feira, a cantora Adele, a grande vencedora das categorias “Álbum do Ano”, “Música do Ano” e “Artista do Ano”, declarou: “Eu realmente amo ser mulher e ser uma artista feminina. Eu amo. Estou muito orgulhosa de nós, realmente estou”.

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Pronto. Isso bastou para a cantora ser acusada de transfobia. Imediatamente, as milícias do "ódio do bem" se mobilizaram para atacá-la nas redes sociais. Adele também foi classificada como TERF (“trans-exclusionary radical feminist”), termo pejorativo que designa as feministas que teriam preconceito contra pessoas trans.

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(O mesmo rótulo, aliás, foi usado no cancelamento da escritora J.K.Rowling, autora de “Harry Potter”, que cometeu o crime de criticar o uso da expressão “pessoas com vagina” no lugar de “mulheres” para designar... Mulheres, isto é, pessoas com vagina.)

Esta foi, aliás, a primeira edição dos BRIT Awards que não premiou um Artista do Ano masculino e uma Artista do Ano feminina: a intenção da mudança era não excluir “pessoas não-binárias” e reconhecer todos os artistas “exclusivamente pela sua música e seu trabalho, em vez de por como eles escolhem se identificar ou por como outros podem vê-los.” [grifo meu]

Adele ainda fez a concessão de dizer que entende por que o prêmio mudou, mas não adiantou nada: foi sumariamente cancelada. Em questão de minutos, internautas “do bem” se mobilizaram para pregar o boicote às músicas da cantora, que teria ofendido gravemente pessoas “não-binárias” e “transgênero”: "Quem pensaria que Adele era transfóbica e usaria a plataforma do prêmio para pedir a destruição da comunidade trans?", perguntou um usuário do Twitter.

Pois é. Uma mulher dizer que ama ser mulher está pedindo a destruição da comunidade trans. É este o nível da argumentação da militância identitária. O que isso sinaliza?

Tem uma questão de fundo aí. Mas antes observem como o texto de justificativa da mudança do prêmio reduz sutilmente o fato de ser homem ou mulher a uma questão de escolha, como se homem fosse quem optasse se identificar como homem e mulher fosse quem optasse por se identificar com mulher. Obviamente, não é: qualquer um é livre para se identificar como quiser, é claro, mas a biologia e a genética importam.

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A dificuldade começa quando o horizonte deixa de ser uma sociedade harmônica, onde todos tenham direitos iguais e se tratem com respeito, e passa a ser uma sociedade dividida em grupos que se odeiam e que buscam um tratamento especial às custas dos direitos dos outros

E qual é a questão de fundo? Para princípio de conversa, há uma contradição óbvia na decisão de abolir premiações específicas para homens e mulheres para apoiar a diversidade, mas essa contradição parece passar despercebida para todos os envolvidos no debate.

A luta legítima da minoria trans é pelo respeito à diversidade, mas, paradoxalmente, o que se fez foi eliminar a diversidade, tornando todos os artistas sexualmente indiferenciados. Respeitar a diversidade de verdade seria criar novas categorias para os grupos que se sentem preteridos ou excluídos e buscam reconhecimento, e não jogar todos no mesmo saco da "neutralidade" sexual, como se isso existisse.

Como se não bastasse afirmar que gosta de ser mulher, Adele cometeu a ousadia de encerrar seu discurso dedicando a vitória à sua família: “Queria dedicar esse prêmio ao meu filho. E a Simon, pai dele. Por toda nossa jornada, não apenas a minha.”

E aqui a equação fecha. Defender a instituição da família nuclear, com pai, mãe e filhos, também é percebido como algo ofensivo pela militância progressista. A família é hoje percebida como uma instituição fascista, heteronormativa e machocêntrica, que só serve para reproduzir valores e práticas que precisam ser abolidas da sociedade.

Mas esse episódio, como tantos outros, revela outras duas contradições:

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A primeira contradição é lutar pela tolerância praticando e pregando a intolerância. Raras vezes se viu tanto ódio quanto o dos grupos que se apropriam de bandeiras de minorias, legítimas em sua origem, para perseguir e esfolar desafetos. Os linchamentos morais e os cancelamentos, cada vez mais frequentes, são prova inequívoca de que aqueles que dizem combater a intolerância são os mais intolerantes.

A segunda contradição é lutar não por direitos iguais, mas por direitos diferenciados. Por óbvio, nenhuma pessoa “trans”, como nenhuma pessoa pertencente a qualquer minoria, pode ser desrespeitada ou ser vítima de preconceito, o que significa dizer: nenhuma pessoa pode ser tratada de forma diferente das demais por ser trans ou pertencente a qualquer minoria.

Mas afirmas que ninguém pode ser prejudicado por suas escolhas ou suas origens implica afirmar também que ninguém pode ser beneficiado por suas escolhas ou suas origens.

A dificuldade começa, justamente, quando o horizonte deixa de ser uma sociedade harmônica, onde todos tenham direitos iguais e se tratem com respeito, e passa a ser uma sociedade dividida em grupos que se odeiam e que buscam um tratamento especial às custas dos direitos dos outros.

Uma sociedade assim não tem com dar certo: uma sociedade na qual os oprimidos buscam não a igualdade de direitos, mas tomar o lugar dos opressores, repetindo as suas piores práticas e adotando a mesma premissa do modelo de sociedade que afirmam combater, qual seja: aquele no qual pessoas são tratadas de formas diferentes com base em sua identidade e sua origem.

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