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Luciano Trigo

Luciano Trigo

“Ah, é uma cristã? Podem linchar, vamos ficar calados”

(Foto: Reprodução Twitter)

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Você provavelmente sequer ouviu falar do assunto. No último dia 13, a estudante de Economia Deborah Samuel, a jovem da foto que ilustra este artigo, foi perseguida e apedrejada até a morte por uma turba de universitários muçulmanos, que em seguida cobriram seu corpo de pneus, tacaram fogo e compartilharam vídeos da barbárie na internet. Aconteceu em Sokoto, no noroeste da Nigéria, região de maioria islâmica.

O crime de Deborah? Ser cristã. Ao citar Jesus Cristo em um grupo do WhatsApp, a jovem despertou a ira de seus colegas, que a acusaram de blasfêmia e exigiram que ela se retratasse. Ela respondeu reafirmando sua fé. Isso bastou para que, em menos de 10 minutos, Deborah fosse sequestrada e sumariamente julgada, condenada e esfolada por dezenas de estudantes universitários. Isso em pleno campus da faculdade Shehu Shagari College. Tudo devidamente gravado por celulares.

Ameaçados e amedrontados, depois de a duras penas conseguir resgatar o corpo da filha e enterrar seus restos mortais na aldeia em que vivem, os pais de Deborah Samuel, também cristãos, se limitaram a declarar: “Não podemos fazer nada, não podemos dizer nada, apenas aceitar [o linchamento] como um ato de Deus”.

Por sua vez, o ímã Ibrahim Maqari, um dos líderes religiosos da comunidade islâmica da Nigéria, declarou que lamentava o método adotado para matar a estudante, mas não a sua morte. Ele escreveu nas redes sociais: “A ação, de forma geral, foi condenável, pela forma como a jovem morreu. Ela merecia a morte, disso não resta dúvida, a questão é quem deveria matar e como ela devia morrer”.

Quer mais? Maqari também escreveu: “Todos devem saber que nós, muçulmanos, não toleramos que ultrapassem algumas linhas vermelhas. A dignidade do Profeta (que a paz esteja com ele) é uma dessas linha vermelhas”. É a versão muçulmana do ódio do bem.

O linchamento de Deborah Samuel não foi um caso isolado. Escrevi sobre o tema no artigo “Os cristãos são hoje a comunidade religiosa mais perseguida do mundo”.

A perseguição e o assassinato de cristãos na Nigéria já se tornaram rotineiros, graças à conivência do governo local e à complacência de organismos internacionais como a ONU, que estão mais preocupados em emitir alertas sobre o risco de extinção de insetos e em passar pano para governantes corruptos que com a perseguição e o assassinato de cristãos.

Seguramente, cada um dos linchadores de Deborah Samuel tinha, no íntimo, a convicção de estar fazendo a coisa certa, de estar do lado do bem

A tortura e execução da universitária foram tão bárbaros e grotescos que até a mídia progressista europeia, como o jornal britânico “The Guardian”, condenou o linchamento, ainda que timidamente e com os malabarismos da linguagem habituais, como mostra esse editorial. Mas isso acontece na Europa, porque lá a revolta diante do caso aumenta a cada dia.

Já para a mídia militante brasileira e para os virtuosos ativistas de rede social este é um tema que não existe. Deborah é uma “não-pessoa”, como diria George Orwell.

Apesar de ser negra e mulher, no Brasil o linchamento de Deborah não teve repercussão alguma, porque o fato de ser cristã a desqualifica moralmente junto às milícias lacradoras – as mesmas que babam de entusiasmo diante de qualquer oportunidade de destilar seu ódio do bem e de capitalizar politicamente uma morte.

Nas raras notas publicadas sobre o episódio no Brasil, sequer se usou a palavra feminicídio. O Black Lives Matter, desnecessário dizer, também fez de conta que não era com ele. É como se todos pensassem: “Ah, é uma cristã? Podem linchar, vamos ficar caladinhos. Esta é uma vida negra que não importa”.

Mas há outro aspecto a considerar aqui: a lógica do linchamento real da Nigéria é a mesma dos linchamentos simbólicos que hoje se praticam cotidianamente no Brasil, nas redes socais e em tribunais de justiça sumária de grupos do WhatsApp.

Seguramente, cada um dos linchadores de Deborah Samuel tinha, no íntimo, a convicção de estar fazendo a coisa certa, de estar do lado do bem – e o pertencimento ao grupo, a diluição de cada indivíduo no grupo, reforçava essa convicção, ao mesmo tempo em que o eximia de responsabilidade.

O que quero dizer com isso? Que, em sua natureza, o ódio do bem praticado pelos fundamentalistas nigerianos é similar ao ódio do bem praticado pelas milícias progressistas que dominam as redes sociais, grande mídia e até parte do Judiciário: uns e outros não reconhecem sequer a humanidade de seus adversários; são apenas inimigos a abater.

“Do alto da minha superioridade moral estou autorizado a linchar, porque eu estou do lado certo, e eles estão do lado errado”.Estamos aceitando conviver com esse padrão de forma perigosa. Ainda não se apedreja ninguém em praça pública por crime de opinião no Brasil, mas os apedrejamentos simbólicos, promovidos quase que diariamente em tribunais reais e figurados, já destruíram muitas vidas.

Como os fundamentalistas nigerianos, os virtuosos militantes do progressismo têm a convicção de estar do lado certo, e o apoio de seus pares reforça essa convicção. Como um 007 da lacração, eles têm permissão especial para matar qualquer um que discorde das suas ideias e valores – ainda que, por enquanto, só matem simbolicamente.

Viva a censura. A liberdade de expressão é para um lado só. Toda blasfêmia será cancelada, na Nigéria como no Brasil. A diferença está só no tipo de linchamento e naquilo que se considera blasfêmia, lá e cá.

Mas que ninguém pense que está protegido ou que tem alguma garantia ou salvo-conduto por pertencer a tal ou qual minoria: amanhã a vítima poderá ser você.

Você, que ficou em silêncio quando viu lincharem um conhecido seu, pense bem antes de discordar da turba ou de emitir uma opinião independente sobre qualquer assunto, porque o afã de perseguir e esfolar já saiu de controle há muito tempo.

O linchador de hoje será o linchado de amanhã. É o que acontece quando o mal cresce, e os bons ficam calados.

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