“Agora que Donald Trump anunciou sua candidatura à reeleição para presidente dos Estados Unidos, o incessante empenho de seus oponentes políticos para incriminá-lo a qualquer custo, a fim de impedi-lo de concorrer, só aumentará. Esses esforços podem representar a ameaça mais significativa aos direitos civis desde o macarthismo. Embora o fim possa parecer louvável para muitos – impedi-lo de retomar a presidência –, alguns dos meios defendidos e empregados desafiam os próprios fundamentos constitucionais da liberdade americana: o devido processo legal, o direito a um advogado, a liberdade de expressão e o Estado de Direito.”
Assim começa o recém-lançado livro A perseguição a Donald Trump (LVM, 2023), do advogado e cientista político americano Alan Dershowitz. Com conhecimento de causa, argumentos bem fundamentados e sem histrionismo, o autor, que durante décadas foi professor em Harvard, demonstra por A + B que Trump está sendo vítima de uma caçada impiedosa e ilegal, incompatível com os pilares da democracia americana. Pior: essa caçada está sendo feita... em nome da defesa da democracia. Ainda bem que no Brasil não acontecem coisas assim.
Muito se tem falado nesse tema, mas talvez o maior risco que a democracia enfrenta hoje é justamente a convicção generalizada de que os fins justificam os meios: quando isso acontece, a certeza de ser o dono da verdade e estar do lado certo se sobrepõe até ao direito do adversário à existência.
O vale-tudo da batalha política se sobrepõe à Justiça, que deixa de ser independente para se tornar mera ferramenta de perseguição de um lado pelo outro. E a primeira vítima da judicialização da política – e da politização da Justiça, aka ativismo judiciário – é a liberdade, começando pela liberdade de expressão.
O autor chama a atenção para um aspecto que vem sendo negligenciado no debate sobre o tema no Brasil: a tese de que, para se indiciar alguém da estatura de um ex-presidente, é necessário que haja “consenso bipartidário”.
No caso do presidente Richard Nixon, até os republicanos no Congresso americano consideraram os seus crimes suficientemente graves para justificar seu afastamento. Este não é o caso de Donald Trump, que é apoiado pela maioria esmagadora dos políticos e eleitores republicanos.
É mais ou menos como funciona o impeachment no Brasil, que voltou a se tornar trending topic no "X-antigo-Twitter" por conta das declarações do presidente sobre Israel: para se afastar um presidente não bastam os requisitos jurídicos (que, procurando bem, sempre existirão); também são necessários os requisitos políticos.
No caso dos afastamentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, estiveram presentes os dois requisitos, conforme entendimento materializado na votação no Congresso Nacional. Tudo seguindo rigorosamente a Constituição.
No caso de Dilma, vale lembrar, mesmo impedida e afastada ela manteve seus direitos políticos – tanto que pôde concorrer a uma vaga no Senado por Minas Gerais, na eleição seguinte, em outubro de 2018. Mas não foi esta a vontade do eleitorado: apesar de ser apontada como líder nas pesquisas de intenção de voto (ah, as pesquisas...), Dilma amargou um quarto lugar naquela eleição, com pouco mais de 15% dos votos.
Ora, coisa bem diferente está acontecendo com o ex-presidente Jair Bolsonaro, que, mesmo preservando apoio de metade do eleitorado, o que seria uma barreira política a qualquer forma de perseguição, foi tornado inelegível após deixar a presidência – e corre o risco até de ser preso – com base em alegações bastante controversas, ou mesmo frágeis aos olhos de muitos juristas.
Os argumentos não são feitos com base em seus méritos ou deméritos. Os únicos critérios são saber qual lado é beneficiado pela forma como a questão é decidida
Outro dado curioso é que, além de Bolsonaro, só dois ex-presidentes na História republicana foram declarados inelegíveis depois de deixarem o cargo: Fernando Collor e Lula, que é hoje presidente.
O que mostra que no Brasil tudo é possível e até o passado é imprevisível: decisões supremas podem ser revertidas ao sabor dos ventos e das conveniências, e é ilusão acreditar que ventos e conveniências não mudam.
Voltando a Trump, cabe ressaltar que, jurista renomado e autor de mais de 50 livros, Alan Dershowitz não tem qualquer laço com o Partido Republicano, ao contrário: ele se define como um liberal, no sentido americano da palavra.
Em alguns momentos do livro, aliás, ele escorrega na tentação da equivalência moral, principal sintoma da doença do isentismo: por exemplo, quando adverte para o risco do olho por olho, já que a direita pode passar a perseguir grupos de esquerda quando voltar ao poder (mas qual político democrata foi perseguido pela Justiça quando Trump era presidente? Dershowitz não diz).
Mesmo assim, por causa de sua defesa de Trump, Dershowitz já foi desconvidado de diversas palestras e seminários. Como era previsível, ele foi, basicamente, cancelado. Episódios assim o levaram a refletir sobre as perigosas implicações de uma tendência crescente na política, na academia, na grande mídia e até mesmo nos tribunais americanos: punir os princípios e premiar a hipocrisia partidária.
No fundo, ele apenas afirma o óbvio: o mais importante são os princípios da Constituição, não o lado de quem está perseguindo ou sendo perseguido:
“Progressistas de longa data, que suspeitavam dos promotores, do FBI e dos comitês de investigação do Congresso, de repente se tornaram seus apoiadores mais fervorosos, defendendo táticas ainda mais agressivas e repressivas, desde que direcionadas a perseguir Trump. Os defensores dos direitos constitucionais do ex-presidente devem ser silenciados, sua liberdade de expressão atacada, sua integridade questionada e suas carreiras ameaçadas.”
De novo: ainda bem que isso não acontece no Brasil. Dershowitz continua:
"Os argumentos não são feitos com base em seus méritos ou deméritos. Os únicos critérios são saber qual lado é beneficiado pela forma como a questão é decidida. E um argumento vencedor com base nos seus méritos será atacado se beneficiar a pessoa ou o partido errado. Um argumento perdedor será elogiado se beneficiar a pessoa ou o partido certo.”
O título do livro anterior de Dershowitz já diz tudo: “The Price of Principle: Why Integrity Is Worth the Consequences”. Manter-se fiel aos princípios quando é tão mais fácil ceder ao aplauso dos hipócritas se chama integridade moral e honestidade intelectual, dois artigos cada vez mais em falta entre aqueles que se julgam portadores do monopólio da verdade e do bem. Não apenas nos Estados Unidos.
Dershowitz conclui:
“Muitas pessoas decentes acreditam que uma segunda presidência de Trump colocaria a nação em risco, devido a isso é difícil convencê-las de que os ataques às garantias constitucionais causarão danos duradouros – e, talvez, irremediáveis – aos estimados direitos conquistados. O fato de que podem ter razão até certo ponto dificulta ainda mais persuadir muitos cidadãos de que a ameaça aos direitos individuais pode ser maior e ainda mais perigosa. Eles veem o risco representado por Trump como concreto e imediato, enquanto o prejuízo às liberdades é mais abstrato e em longo prazo. Mas a História nos ensina que os fins, mesmo os considerados nobres, não justificam os meios ignóbeis, incompatíveis com a democracia e o Estado de Direito.”
Investida da PF desarticula mobilização pela anistia, mas direita promete manter o debate
Como a PF costurou diferentes tramas para indiciar Bolsonaro
Como a PF construiu o relatório do indiciamento de Bolsonaro; ouça o podcast
Bolsonaro sobre demora para anúncio de cortes: “A próxima semana não chega nunca”
Deixe sua opinião