Um livro importante na minha formação foi O mínimo eu – Sobrevivência psíquica em tempos difíceis, de Christopher Lasch. Publicado no Brasil no final dos anos 80, à primeira vista ele permanece atualíssimo em seu diagnóstico da angústia contemporânea. O próprio autor resumiu assim a sua tese central:
“Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trás, por medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; e quando se olha para frente, é para ver como se garantir contra os desastres que todos aguardam. Em tais condições, a individualidade transforma-se numa espécie de bem de luxo, fora de lugar (...)
“A individualidade supõe uma história pessoal, amigos, família, um sentido de situação. Sob assédio, o eu se contrai em um núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional exige um eu mínimo, não o eu soberano do passado.(…) O risco de desintegração individual estimula um sentido de individualidade que não é 'soberano' ou 'narcisista', mas simplesmente sitiado”.
Lasch aplica variações dessa reflexão a diferentes aspectos da sociedade de seu tempo, mas o essencial está aí: em condições de adversidade e pressão crescentes, o indivíduo precisa de um sentido mínimo de identidade, de um núcleo psicológico-emocional onde se refugiar e no qual se reconhecer. Sem este “eu mínimo” que funciona como um escudo, afirma Lasch, o indivíduo sucumbe, sua identidade se desintegra, não há mais separação ou fronteira entre a sua subjetividade e o meio em que ele vive.
Em uma sociedade já então marcada pela crise moral, pelo descrédito da política e pela ausência de valores compartilhados que são indispensáveis para a vida em comunidade, só restaria ao indivíduo se encasular neste “eu mínimo” como estratégia de sobrevivência psíquica. A alternativa seria renunciar a qualquer senso interior de identidade.
Hoje vivemos na sociedade das identidades prêt-à-porter, na qual o presente não tem nada a ver com o passado e tudo é passageiro
Curiosas são associações do inconsciente. O livro de Christopher Lasch – também autor do premonitório A cultura do narcisismo, publicado mais ou menos na mesma época – me veio à mente quando me deparei com o título de uma entrevista da Anitta: “Anitta descreve nova fase: ‘Eu era piranha e agora não sou mais’”.
Fiquei intrigado e não resisti a clicar para tentar entender o que tinha acontecido. Logo depois, o algoritmo da internet me sugeriu outra matéria que trazia mais informações: “Anitta se afasta da pegação e deseja casamento: ‘Quero ficar com quem realmente merece’”.
E, no clipe da recém-lançada música “Used to be”, a cantora aparece vestida de noiva, reafirmando a mudança. A letra diz: “I used to be a hoe, but now I ain’t no more/ Been swimming through the water, but now I’m back to shore/ I look at who I did and I’m like ‘Oh my Lord!’/ I use to be a hoe oh oh oh” (em tradução livre: “Eu costumava ser uma vadia, mas agora não sou mais/ Estive nadando pelo mar, agora estou de volta à costa/ Olho para quem eu peguei e penso ‘Ai meu Deus!’/ Eu costumava ser uma vadia oh oh oh oh”).
Normalmente essas notícias não teriam chamado a minha atenção, até porque Anitta, como qualquer adulto responsável, é livre para namorar quem quiser e quantas pessoas quiser; também é livre para tomar as decisões que bem entender na sua vida amorosa: se não estiver fazendo mal nem violando alguma lei, ninguém tem nada a ver com isso. Ela é livre, por fim, para amadurecer e entender que se envolver de verdade com alguém é mais bacana que pegar geral, sem qualquer apego. Se isso aconteceu, bom para ela.
Mas de repente caiu a ficha: o que Anitta está demonstrando é que Christopher Lasch estava errado. A opção dos indivíduos em tempos de crise moral não passa necessariamente pela afirmação de uma identidade mínima como estratégia se sobrevivência psíquica, ao contrário. A melhor estratégia é se render.
Nos tempos que correm, é muito mais fácil sobreviver psiquicamente sendo piranha num dia, e no outro não, acreditando que é possível nadar muito pelo mar e depois voltar à costa, sem que isso tenha qualquer consequência ou peso moral.
Porque hoje vivemos na sociedade das identidades prêt-à-porter, na qual o presente não tem nada a ver com o passado e tudo é passageiro. É uma sociedade que tem horror a tudo que era considerado permanente: a família, o casamento, a religião, a moralidade tradicional etc. As pessoas mais felizes (ou, pelo menos, as mais ajustadas às demandas do tempo) são aquelas que não resistem a isso. Escrevo sem ironia, é apenas uma constatação resignada.
Neste cenário, não chega a surpreender o caso de uma modelo que, em maio passado, anunciou sua volta à Igreja evangélica apenas para, no mês seguinte, voltar a fazer shows em boates e a postar conteúdos no OnlyFans. Nem o caso de outra modelo, que, reagindo a um internauta que perguntou se a sua (dela) mãe não se importava com o fato de ela vender conteúdos eróticos, respondeu algo assim: “Bem, eu levei minha mãe para uma viagem a Grécia, então acho que para ela está tudo bem”.
Na ausência de critérios morais, o êxito material, o número de seguidores nas redes sociais e a fama passam a ser a régua pela qual se julgam as pessoas. Sem a vinculação da identidade a um lastro moral interior e a uma moralidade coletiva comum, as pessoas podem trocar de identidade como quem troca de roupa. (Aliás, podem trocar até de sexo, mas este é um assunto proibido). A identidade se torna, assim, cada vez menos individual e cada vez mais coletiva, diluída na tribo.
Em suma, dissociada da conexão com a história pessoal, com a formação familiar, com a “moralidade burguesa”, a identidade passa a ser um puro ato de vontade. O indivíduo não precisa mais ser coerente com os próprios valores, aliás não precisa de valores, nem de um “eu mínimo” que no fundo só atrapalha. É muito melhor sentir, pensar e agir ao sabor dos ventos das conveniências e das modas e vontades passageiras.
Isso também ajuda a entender a pandemia de lacração e a cultura do cancelamento, que grassam nas redes sociais. Sem vida interior, sem um eu mínimo ao qual se agarrar, as pessoas apelam à identidade coletiva da moda para encontrar um sentido na vida e um senso de pertencimento: nas palavras de Lasch, elas “anseiam fundir-se ao seu ambiente em uma extasiada união”. É a resposta a uma transformação social mais profunda: a "substituição de um mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de imagens oscilantes que torna cada vez mais difícil a distinção entre realidade e fantasia".
No fundo, Anitta apenas encarna o espírito do nosso tempo, que estimula a fluidez como valor. A leveza do ser não é mais insustentável como no romance do recém-falecido Milan Kundera; ao contrário, virou uma obrigação. A norma é o descompromisso emocional, a fragilidade dos laços, a adesão aos amores líquidos de que falava Zygmunt Bauman – mesmo quando se emulam, com melancólica nostalgia, os signos rituais externos do casamento, como marketing ou como fantasia sexual.
Talvez isso também explique a fluidez – de opiniões, de crenças, de valores, até mesmo de caráter – de alguns políticos e jornalistas, que passaram a vida inteira denunciando e criticando o mesmo projeto e as mesmas práticas que agora apoiam, sem a menor cerimônia. Na política e no jornalismo, também é possível, e cada vez mais comum, ser piranha num dia, no outro dia não. Errado está quem teima em não achar isso normal.
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