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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Defesa da democracia

Ardil 22

Capa da primeira edição do livro "Catch-22", de Joseph Heller. (Foto: Editora Simon & Schuster/Divulgação)

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Publicado originalmente em 1961, o romance satírico “Ardil 22” (“Catch 22”), do escritor americano Joseph Heller, ajuda a entender muitos aspectos do Brasil de hoje.

A ação se passa na fase final da Segunda Guerra. O protagonista é John Yossarian, piloto de um bombardeiro B-25 e membro de um esquadrão baseado na Itália. Inspirado livremente nas experiências do próprio autor - que voou em mais de 60 missões de combate da Força Aérea Americana - o romance ficou famoso por expor uma situação paradoxal, que pode ser resumida assim:

“Aquele soldado que estiver louco pode pedir dispensa de uma missão, mas aquele soldado que pedir dispensa de uma missão não está louco.”

Ou seja, é uma situação em que regras contraditórias impedem que um direito seja atendido. A norma começa garantindo aos pilotos que não estiverem mentalmente aptos o direito à dispensa, para logo em seguida impedir que eles exerçam esse direito. Na prática, estando ou não louco, o piloto terá que voar.

Com sinais de distúrbios psicológicos, Yossarian faz um requerimento formal para ser dispensado de participar de combates aéreos. Mas o diagnóstico de insanidade é negado pelo médico do esquadrão, porque o próprio requerimento é sinal de que o piloto goza de plenas faculdades mentais – já que loucura seria querer participar dos combates.

A atmosfera de aparente irracionalidade lógica prevalece ao longo de toda a narrativa de “Ardil 22”, gerando no leitor a sensação de estar mergulhado em um mundo irracional e cínico, no qual a aparência de normalidade mascara cotidianamente situações absurdas. Por exemplo, em um determinado momento, um colega de Yossarian é preso sem que se faça nenhuma denúncia contra ele.

O ChatGPT oferece uma interessante análise teórico-abstrata do paradoxo exposto em “Ardil 22”:

“Uma formulação lógica da situação é:

Premissa 1: Se uma pessoa é dispensada de voar por conta de doença mental, deve ser porque ela é insana e solicitou uma avaliação;

Premissa 2: Se uma pessoa é insana, ela não deveria perceber que o é, portanto não teria um motivo para pedir uma avaliação;

Implicação: Uma vez que uma pessoa insana não solicitaria uma avaliação, conclui-se que ou todas as pessoas não são insanas ou todas as pessoas não devem pedir uma avaliação;

Teorema de Morgan: Uma vez que todas as pessoas não devem ser insanas ou não devem solicitar uma avaliação, conclui-se que nenhuma pessoa pode, ao mesmo tempo, ser insana e também pedir uma avaliação;

“Modus tollens”: Uma vez que uma pessoa só pode ser dispensada de voar se ela for insana e também solicitar uma avaliação, mas nenhuma pessoa pode ser insana e também solicitar uma avaliação, conclui-se que nenhuma pessoa pode ser dispensada de voar por razões de insanidade.

Ou seja, pode-se demonstrar logicamente a validade de uma regra absurda. Assim funcionam as falácias formais.

Mas nada disso é inocente ou casual: no romance de Heller, como no cotidiano do Brasil de hoje, trata-se de um mecanismo deliberado, de uma estratégia dissimulada de encenação de virtude e legitimação da violação de direitos.

Acredito que muitos brasileiros comuns se sentem hoje como Yossarian: eles testemunham diariamente autoridades fazerem declarações com base em premissas mutuamente excludentes, que à primeira vista garantem direitos ao cidadão, mas ao mesmo tempo os subtraem.

Por exemplo, a questão da liberdade de expressão, direito fundamental garantido pelo Artigo 5º da nossa Constituição. No Brasil, essa questão pode ser formulada hoje da seguinte maneira:

“A democracia não admite censura em hipótese alguma. Mas aquele que emitir determinadas opiniões sobre determinados assuntos poderá ser censurado, em defesa da democracia.”

Em vez de admitir que existe censura, o que incomodaria até o mais isentão dos isentões, o sistema garante estar defendendo a democracia

Ou seja, ao mesmo tempo em que esse postulado afirma que vivemos em uma democracia (que não admite censura em hipótese alguma), ele priva o indivíduo da liberdade de manifestar suas opiniões e ideias sem ter medo de sofrer retaliações ou sanções legais. É a censura sendo vendida como defesa da liberdade de expressão.

Ou seja, em vez de admitir que existe censura, o que incomodaria até mesmo o mais isentão dos isentões, o sistema garante estar defendendo a democracia. Mas, na prática, destrói a liberdade de expressão, ainda que com argumentos de aparência razoável, se considerados de forma abstrata.

É o que acontece com a frase de efeito “Liberdade de expressão não é liberdade de agressão”. Ora, é evidente que não, e por isso mesmo a legislação prevê que o eventual agredido pode exigir reparação do potencial agressor. Mas de que forma isso justifica a censura prévia imposta a diversos jornalistas, que hoje vivem no exílio, têm contas bancárias bloqueadas e perfis cancelados nas redes sociais?

Tal como se pratica hoje, o objetivo da censura não é punir algo dito no passado, mas impedir que se diga algo no futuro. A Justiça assume um caráter premonitório, como um Nostradamus redivivo que raciocinasse assim: como o sujeito votou no candidato A (por coincidência, de número 22), e não no candidato B, ele representa uma ameaça à democracia, portanto deve ser calado e censurado.

Mas isso não significa censura, imagina. É tudo em nome da defesa do Estado de Direito, confia. Como no ardil do romance de Joseph Heller, afirma-se um direito para manter as aparências, apenas para tentar disfarçar a negação do exercício pleno desse direito.

O mais preocupante é que essa lógica paradoxal passa a prevalecer não apenas em análises judiciais que deveriam ser técnicas e imparciais, mas também na arena do debate público. E assim cidadãos são jogados na cadeia – e lá permanecem – não pelo que objetivamente fizeram, mas por aquilo que determinam caprichos de linguagem tão absurdos quanto os do Ardil 22 -  que transformam atos de vandalismo em crimes de atentado violento ao Estado de Direito.

A ponto de um batom ser tratado como um explosivo, capaz de colocar em risco a democracia. E a frase “Perdeu, Mané” ser tratada como um ato terrorista – dependendo, é claro, de quem a diz.   

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