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Luciano Trigo

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Indicadores

Apagão de dados econômicos já levou a Argentina ao caos

Manipulação de indicadores
Na Argentina, o Indec manipulou dados da economia por cerca de uma década. (Foto: Pixabay)

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Indicadores econômicos são termômetros que medem a saúde de uma economia. Em qualquer democracia, a divulgação responsável, confiável e transparente dos dados da economia é uma premissa fundamental não apenas para a avaliação e o eventual ajuste de políticas públicas, mas para o planejamento das empresas e das famílias.

É importante, também, para preservar a credibilidade do governo junto à população. A história recente mostra que, sempre que se abre um abismo entre a percepção popular e os números que o governo divulga sobre inflação, desemprego, pobreza, crescimento do PIB etc., a coisa começa a desandar. É a antessala do inferno.  

Foi o que aconteceu nos governos de Néstor (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015). Naquele período, a Argentina viveu um verdadeiro apagão de dados econômicos, com consequências para o país que duram até hoje.

No início, a Era Kirchner até que não parecia tão ruim. Para tirar a Argentina da grave crise de 2001/2002, Néstor Kirchner conseguiu revitalizar a economia por meio de políticas de crescimento baseadas no incentivo ao consumo.

Com o passar dos anos, contudo, ocorreu um fenômeno interessante: os preços, o desemprego e a pobreza aumentavam a olhos vistos, mas os números divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) garantiam que a economia estava de vento em popa. Segundo o Indec, a quantidade de pobres diminuía de maneira fantástica, ano após ano. Na vida real, havia cada vez mais indigentes nas ruas. Estima-se que a pobreza real era mais que o dobro do índice oficial.

O caso argentino ilustra bem o perigo da politização e do aparelhamento de instituições que deveriam ser técnicas e imparciais

Mas, por maior que seja a incompetência, a deterioração da economia de um país não se dá do dia para a noite: pode demorar anos. Foi assim na Argentina. Ao longo da década de 2010, o Indec continuou a divulgar números fictícios: inflação anual oficial oscilando entre 6% e 10%, enquanto a inflação real, segundo consultorias independentes, superava 20%.

Também em relação ao PIB, as discrepâncias entre os cálculos oficiais e as análises independentes eram tão grandes que o próprio governo perdeu referências confiáveis, que pudessem embasar políticas mais eficazes. A manipulação mascarou a gravidade do descontrole inflacionário, impedindo que medidas sérias fossem tomadas para controlá-la. É como se o governo tivesse perdido a bússola. Ficou complicado, por exemplo, definir o índice de aumento dos salários dos trabalhadores, com sindicatos de diferentes categorias defendendo o reajuste seguindo dados paralelos, e não o oficial.

A consequência inevitável foi o colapso da credibilidade dos números oficiais. A maquiagem grosseira dos dados ficou ainda mais evidente em 2007, quando Cristina Kirchner alterou a administração do Indec, substituindo técnicos independentes por funcionários ideologicamente alinhados ao governo.

E qual foi a reação do governo à crescente contestação dos dados oficiais? Aplicar pesadas multas e ameaçar com prisão e outras sanções qualquer um que publicasse números divergentes, criando um ambiente de repressão e aumentando ainda mais a desconfiança do cidadão comum. O planejamento público e privado ficou inviável.

Em 2013, fato inédito na história do órgão, o FMI fez uma censura pública à falta de transparência nos dados sobre a economia argentina, particularmente em relação à medição da pobreza. A crítica do FMI foi um sinal de alerta para a comunidade internacional, isolando ainda mais a Argentina no cenário econômico global. Investidores estrangeiros passaram a ver o país como um mercado de alto risco.

Outras decisões do governo só agravaram a situação. Por exemplo, a criação do imposto sobre a compra de dólares (virtuosamente batizado de “Pais – Imposto Para uma Argentina Inclusiva e Solidária”) levou à explosão do mercado paralelo de câmbio, com taxas muito superiores às oficiais. Enquanto isso, o Banco Central queimava as reservas do país, na tentativa de conter a alta do dólar.

As consequências do apagão de dados foram graves. Outrora uma instituição com autonomia técnica e administrativa, reconhecida pela seriedade na produção de dados estatísticos, o Indec ficou conhecido como uma “máquina de mentiras”.

A manipulação de indicadores continuou até 2016, quando o Indec refez sua metodologia seguindo normas internacionais, já no governo de Mauricio Macri. Mas ainda hoje o apagão dos governos Kirchner continua afetando o debate econômico no país, marcado pela desconfiança generalizada da população nas instituições públicas.

Esse episódio ilustra bem o perigo da politização e do aparelhamento de instituições que deveriam ser técnicas e imparciais. A nomeação de dirigentes alinhados a interesses políticos pode levar a tentativas de interferência, especialmente em períodos de crise econômica. Sobretudo em governos com tendências populistas, a tentação de maquiar dados para evitar desgaste político tende a ser ainda maior.

Para governos populistas, a manipulação de indicadores econômicos é uma estratégia para consolidar poder, mascarar problemas e garantir apoio popular

Para governos populistas, a manipulação de indicadores econômicos é uma estratégia para consolidar poder, mascarar problemas e garantir apoio popular. Mas, apesar de poder dar frutos no curto prazo, essa prática leva invariavelmente ao fracasso. Dados imprecisos levam à tomada de decisões equivocadas e a políticas públicas mal formuladas, incapazes de resolver os problemas estruturais da economia.

Mas por que governos populistas manipulam indicadores? Não faltam explicações.

Governos populistas se baseiam em promessas fantasiosas de prosperidade econômica e melhorias rápidas nas condições de vida da população. A divulgação de dados positivos sobre PIB, desemprego, inflação e dívida pública atesta o sucesso da administração e passa a mensagem de que o governo está alcançando seus objetivos.

Outro método de manipulação é a revisão de critérios metodológicos: altera-se a maneira como os indicadores são calculados para apresentar resultados mais favoráveis ao governo. Por exemplo, redefine-se o conceito de “emprego” para reduzir artificialmente a taxa de desemprego. Omitir dados, retardar a publicação de relatórios com informações negativas e fazer propaganda exagerada de dados positivos específicos, ignorando o contexto mais amplo, também são práticas comuns.

Como ficou claro no caso argentino, os custos dessas práticas são altos: elas aumentam a desigualdade e comprometem o desenvolvimento do país. Ao mascarar a realidade econômica, o governo priva os cidadãos de informações cruciais para planejar suas vidas. No médio prazo, isso só pode gerar frustração e desconfiança, levando a protestos e instabilidade social.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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